4 de junho de 2013

FISSURAS DO SUPEREGO E SUJEITO ESTILHAÇADO: ENIGMAS EM (RE)CONSTRUÇÃO


As sociedades contemporâneas na virada do milênio distam, radicalmente, das noções germinais, que permearam as correntes sociológicas, e, que, no início do século XX, definiram o perfil do Homem no modelo civilizatório da modernidade, à época. Acerca deste modelo, especulações constatações, reflexões e diversas teses foram realizadas a fim de que houvesse uma tentativa mais objetiva, cujo intento era, precipuamente, o de aproximação da personagem histórica, o Homem, do cenário mais convincente, no qual a sua identidade estaria em processo contínuo de construção: o código social. Por este raciocínio, é lícito afirmar que entre a percepção de uma realidade, que concorreria, sobremaneira, para a construção de uma identidade, a partir do estatuto social emergente, na decadência secular, e a tentativa de manter, no centro da questão, a complexidade que perfaz o sujeito do tempo das máquinas como cédula artificial, vislumbra-se, de forma indubitável, o reconhecimento da existência de um abismo gigantesco, que promoveu a excentricidade das individualidades, no risco do próprio descentramento de seus eixos estabilizadores na realidade circundante, em constante mutação; na trilha íngreme para o esfarelamento daquilo que não se pautava como sólido na realidade aparentemente sustentável. A despeito desta oportuna postulação, impõe-se uma reflexão: será tal configuração uma ilusão quase real, um sonho enebriante, um oásis fugaz ou um devaneio eterno?


Em cada grupo social, há e haverá sempre leis e princípios que espelham a realidade daquele. Neste sentido, as células, em conjunção multíplice e em processo contínuo de transformação, deveriam ser o reflexo potente da infinidade de subjetividades, que parecem traduzir a verdade de um tempo histórico, cultural e psíquico, por excelência. A introjeção de valores, que são, nada mais, do que vetores representativos de todos os elementos exógenos e que corroboram, sobremodo, para a formação de cada indivíduo, na sociedade, em seu formato genérico, nos dias atuais, provoca a distorção de realidades, que, díspares, não são módulos geminados; antes, são fatos e paisagens dessemelhantes e em desvio permanente na sociedade, paradoxal e forçosamente balizada, nos dias atuais, pelo código digital. O inchaço e o imbricamento das linguagens representativas de culturas distintas, no mundo globalizado, são marcas de uma estrutura superegoica, que se move em águas inquietas como se fosse uma nau à deriva. Se esta constatação é válida para os limites do Superego, como definir, então, o traço identitário do Homem, nas ilhas informacionais, em que se constituíram os ambientes sociais do século passado? O sujeito individual traz consigo a sombra de um sujeito universalizante. Uma cultura local ou regional carrega o peso de uma civilização de modelo planetário. Conclui-se, a priori, portanto, uma crise dupla: o superego, que adentra o Inferno de Dante, e que, sob turbulências avassaladoras, é atingido por fissuras de toda ordem. Na ponta extrema, está o sujeito, que, fragilizado, se perde nos estilhaços de uma linguagem em estado de corrosão progressiva e, simultaneamente, decadente.


Há muito, o Homem se afastou da superfície lacustre original, onde rostos eram atraídos por um brilho narcísico e identidades eram eternizadas por paixões letais. Não está em pauta o mito ou a tragédia universal, mas a representação de alguém que ultrapassou o sentido mitológico daquilo que não deveria ter sido; e que, na contramão, sendo, desmediu as leis possíveis e plausíveis de uma civilização, à beira de um colapso sem precedentes na estória da Humanidade. Antes, pela visão eurocêntrica, as questões orbitantes, em torno de um mundo com um perímetro menor ou vislumbrado como uma porção de terras, onde a civilidade deixara suas marcas de uma possível maturidade, pareciam ter algum sentido, ainda que uma estrutura virtual pudesse suportar preceitos, princípios, teses e antíteses de um modelo cultural e dito civilizatório, ao tempo em que a Peste se consolidara como via emergente para observar e compreender o Homem, na condição de ator de um psiquismo, ainda à mercê de investigações mais consistentes. No entanto, em uma realidade planetária, que abriga, atualmente, mais de 7 bilhões de pessoas, em uma teia pesada e com uma trama cada vez mais complexa, crescente e esférica, a conceituação e a atuação do Superego, em seu modelo fundacional, não correspondem à realidade cultural, em tempos pós-cibernéticos, que, por sua vez, não se limita ao risco geográfico de um continente envelhecido, mas transpõe, exponencialmente, todos os lugares na aldeia global. O Superego desmesurou suas fronteiras significativas e busca, desse modo, a sua reinvenção para sustentar-se como condutor de uma realidade em terceira dimensão e resguardar, como um grande guarda-chuva, o seu habitante comensal: o Homem. Neste jogo histriônico e insaciável, o sujeito, atraído por seus desejos mais bestiais, em um modelo capitalista, que recalca monstruosamente a fruição em nome de uma sistema, que, por conseguinte, investe na ansiedade, no falso hedonismo e na compulsão mórbida, é tragado como legume verde em uma centrífuga e se desfaz em ínfimos pedaços daquilo que um dia foi sem saber o quê ou quem, para, finalmente, ser, ad eternum, algo que jamais saberá quem poderia ser ou o quê, uma vez que, sendo o que não é, transforma-se na categoria da não - existência; no rabisco da não - verdade; no vácuo inominável, que pode ser (o) Tudo como também pode ser (o) Nada. O problema, portanto, com efeito, não é de espaços, mas, sim de linguagem. Na falha sistêmica de um mundo que se redescobre entre cabos de fibra ótica, que se configuram e se desfiguram constantemente, e ondas virtuais, que podem induzir/conduzir navegantes insólitos a ilhas desconhecidas, a grande questão é: como estabelecer as conexões essenciais para que os significados não produzam ruídos e, sim, mensagens? Hermes se perdeu em sua trajetória ontológica e a Humanidade retornou à escuridão dos primórdios.


A questão, neste sentido, rompe as fronteiras do cogito ergo sum, pois a sensação é confundida com a percepção de uma realidade marcada por um sentimento apocalíptico; de fim de mundo; algo que solapa as bases de uma cultura global, que não resistem a um ataque viral e ubíquo como se fossem práticas terroristas a aterrorizarem os cidadãos do mundo, na imensa e vasta porção continental, que se tornou o planeta Terra, sob o efeito preponderante dos plugs in. Assim, o que se constata, inequivocamente, é a desordem do The Day After. O mundo não acabou, mas é como se o fim começasse o seu percurso magenta e tempestuoso sobre todas as cabeças em rota de colisão; individualidades acometidas por um estado afásico e geometricamente progressivo. Afecção assintomática, que acidenta todas as possibilidades de decodificação de uma linguagem que, se não está emperrada pelo aparelho fonador, devido ao aprisionamento das identidades nos pólos virtuais, está, aquela, recalcada como nunca estivera por causa do excesso de informação, que, paradoxalmente, tem conduzido esta humanidade à deformação de sua identidade, de suas origens. Assim, é imperiosos afirmar que a sua imagem distorcida, longe de qualquer face especular, paira sombria em algum pântano lodoso, sem reflexo e completamente mortal - cenas de um estatuto superegoico, em cujas dobras sobrepesam uma estrutura condenada à falência total e que está, portanto, em franco processo corrosão. A indagação é: como lidar com algo tão opulento e singular; com características sui generis, sem qualquer formulação metafísica e não cabível em um modelo denominado Aparato ou Aparelho Psíquico? O pai da Psicanálise não vislumbrou o que poderia acontecer em um futuro distante e soturno; talvez mais nefasto do que aquele preconizado e que fora tornado real por um nazismo genocida e insano; patrocinado, ainda, por um ato de traição e protagonizado lamentavelmente por um de seus mais críveis discípulos: Jung, ao tempo em que Metapsicologia conquistava espaços para além dos germanismos epocais. O mal estar em Freud, com efeito, era uma antevisão do mal estar que a civilização, em convulsão acirrada, no trânsito das decadências finissecular e finimilenar, respectivamente, emergiria e detonaria uma estrutura, que, por sua importância e singularidade, deve ser reformada, sob pena de a Humanidade assistir não somente o desmantelamento de um Superego esvaziado de significação plena e de um Sujeito, de tônus universalizante, sem face, destituído de sombra e, portanto, sem heroi e fé, desfazer-se em um processo antagônico, operando contra si e em si o espetáculo da implosão e transformando-se em um ser bruto, cujo movimento seria algo para além do recalque, talvez a fossilização do Eu em camadas arqueologicamente cerradas sobre um hermético silêncio, enevoado por uma atmosfera melancólica e acentuadamente espetacular. 


A senda da reflexão proposital, que ora apresento, revela uma fenda insidiosa e inevitável: o espaço mais arcaico do psiquismo, donde se originam todas os módulos constituintes da identidade humana - o Id. Um sujeito em agravo profundo é um corpo a cair num abismo de proporções imensuráveis. A desestruturação do Superego, pondo em risco imediato a categoria universal do Sujeito, que se despedaça em fragmentos estilhaçados, pode ser uma mensagem para o fim de uma visão clássica, talvez romantizada do homem do século XIX. Entretanto, a estrutura que define o ser da psiquê não se desfaz, mas a camada egóica, mergulhada em um lençol cristalizado, não quantificável por equações matemáticas, conduz o homem dos trânsitos epocais à linha tênue, que divisa o Id do Ego. Há, neste sentido, uma confusão no que concerne à visão do sujeito e seu psiquismo, na centúria que desponta como o século da megainformação. Para além do primado da luz, como sema que indica o caminho por um lógos cada vez mais revelador sobre os caminhos da própria Humanidade em sua obsidiante tarefa, que é a do conhecimento de sua origem, há, paradoxalmente, no despertar da Ciência, em todos seus afloramentos magistrais, uma força que inclina o exercício do Cogito para o aniquilamento de um patrimônio, que tem onerado, sobremaneira, as civilizações: a Cultura, em todas as suas versões históricas e com todos seus significados universalizantes. Entre o salto quântico do homem transmilenar e o investimento no Ego, em derrocada, devido à compulsão das individualidades, há uma linha delicada, que parece apontar a vereda a ser seguida, e isto não se constitui em um receituário, mas, antes, um ponto de reflexão acerca da profunda transformação porque passa o dito homem do futuro/de futuro (?), cujas premissas causam mal - estares e instabilidades aos fundamentos psicanalíticos - da teorização à prática clínica. O sujeito estilhaçado é tudo, menos um Sujeito. O superego fissurado é tudo, também, menos o Superego. As categorias são esvaziadas por um processo antagônico, cujos vetores são manifestações endógenas diversas, em uma realidade torpedeada por informações, que não favorecem o robustecimento de instância alguma, mas à inflação da estrutura psíquica, que, debilitada e fragilizada pela natureza da crise, na qual o Homem se reconhece como sujeito neurótico, tende a ruir como um castelo de areia à beira-mar. O excesso de realidade, portanto, produz no sujeito estilhaçado dois movimentos distintos e paralelos. A saber: o recrudescimento e a alienação. A esfera assemelha-se ao espaço onírico, que entorpece mentes e consciências, em estágio planetário, e a percepção de uma nova realidade estabelece um paradigma renovado da linguagem, na transitividade da primeira década do novo milênio. Assim, há uma via estreita, divisando o real, falseado por mascaramentos de toda ordem, e o não - real, codificado por senhas, que se revelam e se transformam em sinais extraordinários, distantes da verdade egoica e organizadores de uma nova ordem. O bunker de salvação do sujeito estilhaçado é o emaranhado inconsciente, que rumina a realidade com toda sua gama de camuflagem. Na insustentabilidade do Ser, os camaleões perdem seus matizes distintivos e são devorados por seus predadores vorazes.


O recrudescimento e a alienação da instância egoica produzem uma nova interface nas relações a serem pautadas por um sujeito individual, que se coletiviza, e outro sujeito, que se individualiza, na multidão. Desafortunadamente, para o sujeito, que deveria ser o protagonista da ação em um mundo, onde a informação domina e, por esta via, seria o turno mais plausível para o escoamento de sua voz em todos os lugares, o efeito expansionista dos desejos daquele excede os limites tangíveis da compreensão, pervertendo a ordem natural e tornando aquele em antagonista de sua própria ação, que seria a transformação da realidade circundante. Por conseguinte, presenciam-se um eco ensurdecedor e pontos múltiplos de uma conexão partida. Perde-se o diálogo, perde-se o monólogo; há somente uma possibilidade remota de comunicação em meio a uma selva eletrônica, onde as palavras têm seus significados corrompidos. Logos corrompido, portanto, é foco de uma clareira aberta na floresta em chamas. Há, afirmativamente, um sujeito destoando da canção original, e a poética do ser está dessintonizada dos acordes de alguém, que deseja buscar o eldorado tão sonhado, tão almejado. A narrativa não é legendária; é, acima de qualquer especulação, o mapa da redescoberta de Si. Egos fraturados, superegos desmantelados e a força animalesca de um Id compõem o cenário de um filme de ficção científica ou de uma lenda urbana, em tempos de atmosfera retrô, minimalismos de toda sorte e uma realidade em terceira dimensão. Os efeitos visuais da realidade em vigência desafiam, por este turno, o sujeito, que, antes do estilhaçamento total, é uma corda esgarçada in extremis, que arrebenta devido à banalização exacerbada do Eu ao repercutir a voz da Alteridade, promovendo, desse modo, a sua consequente anulação. O eu não é o mais o eu. Que instância do psiquismo será, pois, então, o Ego? Em stand by mode, o sujeito é refém de dados, que navegam, de forma aleatória, representando cédulas incompatíveis com a sua natureza. O eu universalizante é uma faca afiada para a degola do sujeito que, capitalizado em excesso, está destituído de sua identidade. O eu coletivizado, ao se individualizar, pateticamente, é o corpo, que mergulhado duas vezes nas águas de um rio, não consegue, aquele, repetir a ação idêntica quando da sua investida inicial. Em mutação acelerada por um digitalismo global e um capitalismo canibalesco, o eu da coletividade é um ícone desprovido de significante e de significado. Que protagonismo, portanto, exercerá o Inconsciente diante da falibilidade que acomete as instâncias psíquicas por causa do enfraquecimento da Linguagem? O verdadeiro eu está alocado em algum arquivo oculto e o recrudescimento, neste sentido, é, inequivocamente, uma rota de escape. Messianismo em Psicanálise não existe e jamais existirá; o que há, com efeito, é uma rede complexa e latente denominada mecanismo de defesa. A realidade de um eu estilhaçado, que não tem (mais) o suporte de um superego falido, está sob forte ataque, pois o instrumental de defesa - a palavra - foi desconstruída; e, na transitividade da crise, a fagulha essencial do logos também deverá estar alocada em outro arquivo, que, por sua vez, estará suspenso e ocultado pelo manto da invisibilidade. Realidade e fantasia emergem de uma Caverna, onde o Dragão nunca perece; e Sheila, a ladra, surgiu para proteger a palavra essencial, o ego fraturado e um superego desconstruído. Que chave abrirá o portal para o retorno triunfal das vozes aprisionadas?


O Homem não vive sem a (sua) linguagem. Código essencial; fogo roubado dos deuses - senha prometéica, que garantiu, segundo a narrativa mítica, a evolução da espécie humana, sua descoberta como grupo social e, sobretudo, protagonista de uma realidade superegoica em formação, ainda que o psiquismo, como fora concebido pelas tábuas freudianas, não tivesse emergido na consciência tribal, impulsiva e instintiva para consagrar a luz do Ego como logos fundador, na cena da Cultura. Mal - estares apartados, o Homem da nova centúria não goza de bem - estar algum. Algo que ultrapassa a náusea sartreana e uma vertigem, que dá arrepios a qualquer acrobata na corda bamba, o espetáculo é o do absurdo, pois os egos mascarados são distorções de uma realidade em desconstrução e, quiçá, em reorganização. Superego obeso é sintoma de morte no ar: das instituições carcomidas por falsos valores e pela hipocrisia, que assola as mentes daqueles que produzem leis para o favorecimento de poucos e para o estraçalhamento da maioria. Em tempos de barbárie e de uma ameaça, que põe em xeque a sobrevivência de um sujeito, que pode, de forma remota, mas não impossível, fixar-se na zona fronteiriça de si, enraizando suas dúvidas e medos em uma zona neutra, e que, por ser o espaço do trânsito, a aparência da quietude pode revelar o traço hediondo de um ser que não faz/fará distinção entre o amor e o ódio, a guerra e a paz, a verdade e a mentira, o sim e o não, o início e o fim; a estrutura do psiquismo pode sofrer um colapso individualizante no perímetro da entidade que se globaliza e não se sustenta. Por fim, o  Superego é uma ilusão de ótica de um Ego, que não existe mais; é, com efeito, uma estrela longínqua no firmamento, cujo brilho ainda alcança os olhos humanos, mas a luz do astro, que viaja no espaço sideral, é lembrança de um corpo que há muito já conhecera o próprio fim. 


Em reconstrução, os enigmas amordaçam lábios carentes e um silêncio tirânico oculta o voo majestoso da esfinge. No estilhaçamento das realidades pós-metafísicas, um outro mistério impõe uma indagação angustiante: como recuperar os arquivos perdidos?

25 de novembro de 2011

A Psicanálise e o fenômeno das redes sociais.


O sujeito é dependente da verdade: conexão estabelecida a partir da sua origem meta(sim)bólica, seu movimento pendular constante e sua natureza ímpar, que é a de modular ocultamentos e descobrimentos no mundo real. Essa ligação, visceralmente obstinada, é a plataforma de acesso do saber psicanalítico à estrutura que Freud denominou Aparelho Psíquico - complexo que suporta o sujeito e sua cadeia de significação, antissignificação e metassignficação, através do turno da fantástico e misterioso da Linguagem. Assim, a priori, o nascimento ou o surgimento, a formação, a sobrevivência, e o desaparecimento do sujeito formam o arco convexo de sua verdade fundante: substância modelar que dá consistência ao Id, ao Ego, ao Superego, e, provavelmente, ao Alterego.

O conceito paradisíaco de Freud e sua extensão aos defensores de suas teorias, incluindo os desafetos, como foi o caso clássico de Carl Gustav Jung, à época da fundação da Psicanálise, parece desmoronar face à realidade cada vez mais crescente, mas não tão sólida, e que tem renovado as relações humanas, através da popularização das redes sociais na internet. A constatação inequívoca do aparente desmantelamento do edifício, que suporta as teses psicanalíticas, não é um confronto direto ou a proclamação da morte da Metapsicologia no circuito do ciberespaço; antes, é um apelo incisivo àquela para proceder aos ajustes necessários, que garantam a sua sobrevivência, no tempo em que as categorias freudianas do sujeito e seus desdobramentos atuais destoam profundamente das múltiplas faces que os humanos assumem quando se mascaram diante da tela impessoal de um computador, e navegam como um corredor X em um campeonato cibernético no qual vence quem mente mais. Paradoxalmente, não há, na hiperrealidade verdade mais mentirosa do que a proclamada com o advento das redes que socializam em links efêmeros e mortais.

Em jogo mortal, portanto, a verdade: a que outrora configurava o sujeito e sua (con)figuração na realidade, em seus níveis de abordagens diferenciais, ou a sua reconfiguração na realidade contemporânea, onde a cada segundo uma verdade emerge e outra, por seu turno, submerge num piscar de olhos das webcams. O sujeito, um móvel genérico, é, com efeito, o agente discursivo, que nomeia seres e coisas no mundo para sua compreensão e adequação lógico - estratégica naquele;  buscando, desse modo, manter o aprazível equilíbrio de Si no espaço no qual está inserido. Entretanto, a realidade que contrafaceou o ser do lógos, em pautas hodiernas, concorreu para pôr em risco a identidade daquele, que, portando a cadeia singular do Eu, em condições fragmentárias, condicionou este último à perda vertigionosa de seu lugar primo na cena do diálogo. Palavra que transpõe o nível metafísico, verbo que funda a verdade simbólica, vocábulo que traduz a linguagem do Eu interligado às várias cadeias de sua significação na realidade que abrange a si-próprio,  à Alteridade ou a outra categoria emergente à guisa de definição.

O Aparelho Psíquico e sua estrutura quase molecular pairam no vazio das considerações como instrumental que trafega na invisibilidade tal qual o sujeito e os sujeitos, ao navegarem no universo on line, onde o código virtual determina o modus operandi e, por conseguinte, redispõe os atores na malha complexa, que se configura através da relação com o Outro, a valoração da verdade interposta, face à hipertextualidade, e ao paralelismo concorrente, que é estabelecido como câmbio negro, no turno da Linguagem, e que, a priori, intenta ser de base psicológica e metapsicológica do sujeito de base genérica, ao ser configurado como indíviduo desejante. Assim, o edifício freudiano, que concebeu as diversas substâncias para a construção de um pensamento acerca do Eu, determinando no Id a cadeia mais remota e veladora do sujeito visto como lacuna, tende a ruir sobre suas vigas mestras diante de uma realidade que flutua entre isso e /ou aquilo, e que, a posteriori, deflagra a configuração atual das relações entre o sujeito e sua possível alteridade. Assim, é oportuno ressaltar que entre a verdade aparente e a verdade essencial há, indubitavelmente, uma deformidade nos traços distintivos das  personalidades em um jogo de tessitura hologramática.

A emergência faster and faster do fenômeno das redes sociais como subproduto da realidade virtual, que dinamiza o Real, de forma violenta, impõe outros códigos, linguagens outras, que, também, ferem a sólida formulação lacaniana do como, do processo; do trânsito interposto no caminho do que não é inteligível e da ponta do iceberg,  que pode (não) ser compreendida. As redes sociais, que se constituem na tentativa loquaz de rompimento das ilhas sociais, no qual o link é o canal principal, cuja passagem é senão a pseudo libertação dos feudos digitais, destravam a relação monológica do Homem e sua máquina personalíssima - o personal computer -, e avançam para um novo estágio do game, em que as instâncias egóicas, segundo a visão clássica da Metapsicologia, cambaleiam, ou, para ser mais objetivo, estão sendo abaladas pelos sismos provocados por uma linguagem, que não tem concerto algum com a verdade fundamental. Desse modo, o não - real impõe a não - verdade: lei facultada pelo pensamento filosófico. O virtual determina um modelo de verdade, que não se coaduna com a verdade sobre a qual a Psicanálise se debruça para desvelar a via sombria do Inconsciente e outros corredores subjacentes.

Na dança histérica das cadeiras, o Superego afunda sobre sua base positivista, que visa perpetuar a lei, os valores, as crises existenciais, e o mal - estar titânico, que perturba o Homem em sua trajetória marcadamente paradoxal. Os pilares da realidade física não migram para o universo virtual e a visão mimética do mundo, via internet, se transforma num oásis assassino, onde as águas salgam e secam os corpos, ao vivo e a cores, e os solos engolem tudo que tem fôlego. Titanics afundam em plena areia do deserto! É nesta fabulosa trama sem fim chamada www -  World Wide Web - a grande teia ou a rede mundial de computadores -, em que todos são prisioneiros de suas próprias verdades, construídas pelo signo do falso, pela insígnia do que não é; e que institui, em análise final, a caricatura fantasmagórica do inexistente, uma patética representação da realidade em que os sujeitos, em profundo estado de avaria, são a desconstrução da própria realidade. Os sujeitos, em franco processo de desconstrução, são entidades mórbidas prestes a sucumbirem, implacavelmente, ante os enigmas lançados por uma esfinge cibernética de olhar digital, programada para liquidar, eliminar e deletar as identidades que jamais existiram no vértice da Real substantivo e permanente.

O confronto entre a ciência psicanalítica, que estabelece no Id a selvageria e a bárbarie do Homem, que transforma em prazer o impulso animalesco, e a internet, balizada pelas redes sociais, que produzem outras bestas feras, deslizando sobre o perigoso fio da navalha, onde o artificial se sobrepõe ao natural, atrita as realidades cada vez mais dissonantes, e o diálogo corrompido se transforma, indelevelmente, em um leito de águas turvas e sem qualquer sinal de vida. Os ecossistemas do Eu estão comprometidos e a natureza egóica em risco de extinção. Por conseguinte, o portal que acessa o inconsciente, onde os recalques, os desvios e os espaços vazios integram a cadeia mnemônica, não é suficiente o bastante para interagir com a realidade paralela, estabelecida pela rede virtual em toda sua extensão. Assim, cabe indagar: como depreender a verdade do sujeito em estado on line? Como adentrar a realidade intrapsíquica daquele ou daquela pessoa, que se reduz a um dígito num teclado mórbido e estático? Como redescobrir o Si a partir do Outro se na realidade virtual o jogo tirânico das máscaras é monstruoso e fatal?

Na proto-história das redes sociais, o ainda resistente, nos dias atuais, MSN (messenger), que arrancou suspeitas consideráveis dos estudiosos da Linguagem, da Psicologia e da Psicanálise, no que tange ao modo e ao comprometimento da comunicação e a sua relação intrínseca com a verdade desejada, entre os atores envolvidos e conectados na rede, engendrou, no mundo das identidades não - verdadeiras, os males comparáveis àqueles, libertados levianamente pela mitológica Pandora, ao abrir a caixa da Morte. No mito, a esperança, para a felicidade dos mortais, não escapara do box divino. Na realidade virtual, ao contrário da legenda mítica, a tal esperança é a primeira a ser eliminada, pois faz parte do rito a aura densa das instabilidades, das dúvidas e dos transes indefinidos. Assim, o messenger e seus aparentados correlatos, coexistentes e monótonos se desenvolveram (ou foram desenvolvidos) e se transformaram em espaços monumentais, caudalosos e quase imensuráveis, se o problema a ser investigado é a troca contínua de informações. Não há sujeitos na internet, não há inconscientes e nem tampouco conscientes. A meu ver, o Superego se transformou em uma aberração tecnológica e sem controle e o Id conheceu o mais profundo dos abismos. Quanto ao consciente, este se transformou em um container despencado de algum navio, à deriva e sem etiqueta de denominação.

Neste sentido, uma vez mais, a Psicanálise e seu aracabouço técnico parecem encaminhar-se para o próprio divã. Há, de forma inconteste, um profundo declive, que distancia a visão terapêutica do fazer psicanalítico das realidades que plasmam o complexo estrutural do sujeito a partir do mundo configurado pelo digitalismo crescente. A escuta do Outro não pode ser operada por instrumentos lingüísticos; os símbolos perdem suas âncoras e flutuam à mercê  da sorte, em um espaço sem fim, cujas ondas são virtuais e os mares são invisíveis. Na invisibilidade das marés, o afundamento dos corpos, das entidades e, principalmente, das identidades, se dá nas línguas oceânicas e não nas tsunâmins gigantescas, que no mundo real são vistas para matarem; e as classificações metapsicológicas sofrem o engessamento de seu propósito angular: o desvelamento da verdade do Eu através da auto (re)flexão. Corpos flexíveis à sombra de palavras, que refletem a luz essencial. Corpos inflexíveis, que se confundem com as sombras de uma luminosidade artificial; reflexões travadas por uma senha, que não abre os portais da compreensão. Resultado final: um ruído ontológico e um eco que não retumba o som emanado do Eu. De um lado, o lógos psicanalítico articula os níveis significativos e metassignificativos da identidade egóica, nos planos consciente e inconsciente, respectivamente. Do outro lado, o ciberlogos desarticula as juntas, que compõem o universo atômico do Eu, e fratura, em altitudes desconhecidas, a verdade daquele sob o véu da fantasia, em estado de esgarçamento estriado.

Há, portanto, nas redes sociais uma tentativa lúgubre de construção de um aparato, que sustente o diálogo entre os diversos eus que se multiplicam em dimensões insulares, cada vez mais velozes e angustiantes, emergindo para marcar o índice mnemônico e submergindo para fabular aquilo que não é - a versão updated do simulacro como entidade cibernética e robótica concretiza-se e corporifica-se  na tela em 3D. Cenas contínuas de uma realidade em que a palavra é soçobrada pela necessidade verborrágica de sufocar o Eu em nome de uma entidade corrompida para se manter como dado virtual, aparentemente vivo no universo dito on line. Em visão psicanalítica, o on, que, em definitivo, é um ator off line. Tais paradoxos preservam os estatutos psicanalíticos do precipício tecnológico, que desconstrói sujeitos, verbos, verdades e sentidos, e não liberam portais para o empreendimento da Metapsicologia no que concerne à elaboração da verdade egóica. No mundo virtual, o reinado da palavra inexiste; o que há, de fato, é o império da não - palavra; do desdito, do contraditório, do jogo delinquente das máscaras que se desmancham ao simples toque de um teclado sedutor.

A transferência vulgar de poder, que migra da intelecção para ser potencializada nos dedos, que tomam o lugar do pensamento, reduzem os seres envolvidos na web às teclas, cujas letras são ancestrais silábicas. Desse modo, há nas redes sociais um atrofiamento do silêncio, que não é o lugar para a escuta do Eu com vias a  qualificar o sujeito no alcance de sua alteridade aprazível. Ao contrário: o imediatismo, movido pela angústia e pela ansiedade - índices determinativos de um adoecimento psíquico -, produz um novo tipo de comportamento, que é determinado pelo uso constante, abusivo e alienante das redes sociais. Qual seja: as redes não socializam, e, sim, bestializam, transformando os atores on line em caricaturas monstruosas e incapazes de diferir o grão de areia, que é utilizado para a confecção do espelho, e do espelho que é produto de milhões de grãos de areia, em conjunto. A perda da percepção, associada ao fluxo turbinado e alucinante dos bytes, que determinam a velocidade das mensagens enviadas e recebidas nas redes ditas sociais, criou e cria, a cada segundo, um monstro, de carne e osso, para além do mundo digital: os seres antissociais.

O problema, a meu ver, é de dimensões titânicas, literalmente, pois a Psicanálise não é ou está incompetente para lidar com essa nova categoria lógica de pulsões cibernéticas. Por muito tempo, a Psicanálise fora atacada injustamente por aqueles, que cobravam daquela uma ação mais eficaz no código social; o que, para  tais críticos, tal postura não se efetivara, a contento. Não obstante a condenação do estatuto psicanalítico e a ininteligibilidade de sua plataforma, como apregoaram exaustivamente os seus opositores, seja no campo teórico, seja no campo prático, outros acusadores se insurgiram contra a Metapsicologia, de base freudiana, para declararem a sua letargia acompanhada do diagnóstico, que deixaria muitos desses críticos gozando de uma felicidade aparentemente eterna. A saber: a morte do construtcto psicanalítico e todas as suas verdades, consideradas frívolas e dispensáveis, sobretudo quando o temário girava em torno da clínica e da terapia, propriamente dita. A Psicanálise estava, assim, restrita a um grupo minoritário, tornado-a uma paragem destinada a poucos mortais; de contornos complexos e elitizados.

É lícito declarar que na era do mundo virtual nenhuma das abordagens médicas conhecidas e / ou psicoterapêuticas estão inclinadas a postular maneiras ou modos de tratar as realidades emergentes, e que são marcadas por um desvio vertiginoso devido à constituição de suas realidades intrínsecas. Não é possível, ainda, deslindar as verdades e as não - verdades, que diferenciam sujeitos dotados de um psiquismo dito equilibrado daqueles que experienciam neuroticamente a queda livre. Portanto, eis a questão: como diferençar um internauta, que usa a rede social como módulo para socialização, de fato e de direito, daquele que usa a magic screen para blindar a sua face com o disfarce de um sujeito do trânsito, ou  o sujeito psicótico, que, atualmente, é classificado de antissocial? A deteccção, em tempo real, de um sujeito borderline, requer saber, experiência, argúcia, seriedade, comprometimento e observação acerca da natureza do megalômano, que navega em seus mundos fantásticos, desligados da realidade que os circunda: o mundo. A comprovação de sujeitos portadores de desvios comportamentais, pautados na letra virtual, é tarefa quase impossível de ser executada.

Conclui-se, por essa via, que todos estamos em um baile de máscaras, marcado pelo escárnio e pela ironia, e a canção, com efeito, é composta em escalas dissonantes e movimentos constrastantes, que, em vez de nos causar a sensação de prazer, nos causa torpores e calafrios quando nos deparamos com pedófilos, serial killers, assaltantes virtuais, sujeitos antissociais etc, emergindo da tela do computador para transformarem o que era para ser paradisíaco em um inferno impensável. As telas de plasmas com essas personagens, que extrapolam o senso da realidade como concebemos em grupos sociais balizados por normas de conduta, relegam as cenas de um Western com bandidos e mocinhas à idiotia para as mentes que não são brilhantes, na esteira do hipertexto e das hipertextualidades. O sujeito do hipertexto comporta em si todas as variáveis de um sujeito em rota de colisão. Na hiperrealidade, a fabulação fantástica de uma personagem que nunca existiu e que jamais transitou pelo universo do Ser. Na realidade objetiva, a corporificação de um amálgama no qual a fusão dos desvios produzem identidades corrompidas, adoecidas e perigosas para o convívio em sociedade.

As redes sociais, face ao psiquismo, não devem ser executadas em praça pública ou execradas como se fossem um grande mal para a espécie humana. Ao contrário, as tribos cibernéticas, além de serem a estampa a configurarem as gerações plugadas, na primeira década do século XXI, no que diz respeito à interação entre diversos grupos na internet, onde a febre aumenta, em escala crescente e fumegante, os canais de socialização, dos mais diversos tipos, aquelas, desempenham funções importantes como condutores de sociabilidade, desde que o (ser) humano se sobreponha à máquina não na pele da cópia esvaziada de sentido, encarnando simulacros às avessas, nos quais o não - ser impera e a face grotesca da fera encastelada se revela como um algoz irrepreensível, mas no fluxo modelar da Matrix, que tem como função única e precípua a preservação da estrutura psíquica dos indíviduos; e, neste sequenciamento, a manutenção do equilíbrio, o qual buscam os indivíduos na trajetória andina, que é a Vida, para preencherem os vazios, que plenificarão a identidade de cada um; o risco existencial que constrói o ser incompleto em busca eterna de sua completude.

A Psicanálise não surgiu para lidar com complexos interativos estabelecidos por conexões de rede ou algo semelhante. Os estatutos metapsicológicos operam a verdade e seus níveis representativos para elucidarem realidades e trazer à lume o indivíduo, sob o véu melodioso do Sujeito. Ao operar o lógos, qualquer que seja o instrumental, aquela lança seu olhar esfíngico sobre o humano que deixou de ser, em estado de avaria como componente cibernético, a serviço de uma máquina desprovida das instâncias egóicas. A destituição ou a perda de leitura da realidade objetiva - o mundo - é, em verdade, a curva mais espetacular a colocar o sujeito no limbo de sua descrença ou de sua própria desgraça, em um cenário menos promissor, pois, ao desprezar em si o eco natural que o torna um narcisista, por excelência, aquele mata o mais belo dos mortais para se render à voz digitalizada de um maquinarismo acidental, e que, em essência, detona o ser do psiquismo com a falsa verdade que o oráculo, em forma de sombra projetada na parede, prediz, vaticina, fabulando o falso em nome do verdadeiro. Ao delir Narciso, o sujeito está delindo a própria imagem na face especular de um lago suicida. Sem espelhos e sem imagens apaixonantes, as redes sociais, no contra-reflexo, se alastram como vírus mortais em tempos pós-cibernéticos.

Chamada de A Peste no século XIX por seus críticos mais vorazes, a Psicanálise fora jogada no banco dos réus e condenada por ter sido mal compreendida pelas correntes que se opuseram aos seus métodos e às suas abordagens sobre a sexualidade, propostas corajosamente por Freud, à época. No contraponto da realidade que vigora, as redes, que se proclamaram sociais, estão se transformando em teias bestiais de acentos epidêmicos. Se a Psicanálise fora a tão destemida Peste, como chamaremos as redes sociais que dessocializam indivíduos e destroem células de convivência? A resposta não está com a esfinge enigmática nem tampouco com Édipo angustiado. A sentença final, só o tempo dirá.

13 de julho de 2011

PARA ALÉM DA PSICANÁLISE

                                                                               
 "Wo Es war Soll Ich werden"
                                                                                  Sigmund Freud.

Sigmund Freud morreu. O homem Freud morreu como morrem todos os mortais. Isto é um fato histórico  e incontestável; e nas assertivas supramencionadas não há qualquer assombro, pois, com o seu desenlace, há exatos 155 anos, devido a um câncer bucal que o incomodou durante os últimos dezesseis anos de sua vida laboriosa, vagas imensas surgiram, à época, diante de olhares perplexos e indagadores acerca de uma realidade, que parecia mergulhar em um declive profundo, pois o sentimento de orfandade pairava sobre todos que compreenderam a real dimensão da Psicanálise, seu objeto e seu alcance, respectivamente, em um mundo que seria marcado pela fragmentação do sujeito e pela crise aguda do lógos na esfera dos saberes. Assim, com efeito, o pensamento freudiano teve implicações capitais na construção da identidade do homem do século XX, que mal se compreendia, antes do desvelamento das  inúmeras verdades, encerradas no psiquismo selvagem, original, essencial.
Com o advento da Peste, pois fora desse modo que aqueles que se opunham vorazmente à Psicanálise, com seus métodos inovadores, ao tempo que surgira, se referiam, uma nova realidade emergia, e o Homem era convidado a descobrir-se a si mesmo, através de palavras associadas e de sonhos narrados - matéria - prima para o fazer psicanalítico; e o exercício, ainda incipiente, da clínica, onde analista e analisando se confrontavam para que verdades recalcadas fossem expelidas do inconsciente enigmático, provocador e desiderático. Neste sentido, o Seelenapparat não era uma estrutura exógena ao próprio Homem, mas, antes, para o seu próprio desespero, constituía a espinha dorsal do Inconsciente, na amplitude significativa do Unbewusst freudiano.
Em verdade, o pai da Psicanálise jamais imaginou, um dia, que esta última tivesse alcances tão longínquos, pois fora tão mal compreendida, por muito tempo, desde o seu surgimento, não fossem os esforços árduos e contínuos empreendidos pelo médico austríaco. Aliás, as discussões acerca do pensamento psicanalítico ainda se dão no calor das horas infindáveis assim como as aplicabilidade e eficácia de seu método, respectivamente, desde a concepção metapsicológica à realidade individualizada do Homem em seu cotidiano, cuja palavra de ordem e balizadora de todas as coisas é SER, em toda sua plenitude, segundo postulam os ditames da Filosofia.
Claro está que este texto não tem a pretensão de discutir o estatuto do Dasein heideggeriano nem tampouco exigir dos estudos psicanalíticos a sua definição e, por conseguinte, o seu posicionamento ideológico e/ ou filosófico em relação ao SER como advento fenomenológico, propiciando um possível embate entre as diretrizes da Filosofia e os paradigmas da Psicanálise. Todavia, cumpre afirmar que Sigmund Freud, ao lançar as bases para fundamentar suas teses sobre a realidade psíquica do Homem e todos seus desdobramentos, factíveis na realidade exógena, não previu o salto qualitativo que a Humanidade daria para a compreensão de seu papel enquanto agenciadora de uma realidade que se constrói e se manifesta na imanência e na latência de seu contínuo devir. Desse modo, portanto, não é cabível tratar da crise do pensamento psicanalítico ou mesmo da falência da Psicanálise, colocando esta última no rol dos fatos apocalípticos, prática bastante comum na decadência epocal do século XX, e no limiar do século XXI.
Grosso modo, é como se, primeiramente, Freud tivesse atirado, para o centro de um lago, uma pedra, e , posteriormente, desse as costas, de forma abrupta, e não esperasse o movimento das ondas circulares, emanadas do centro do lago para se dissiparem nas bordas. Não há qualquer novidade nesta ilustração, mas o óbvio está no fato de que o Homem, a despeito, por exemplo, de um pensamento globalizado, tenha, enfim, se tornado universal, único, e, por conseguinte, uníssono. Este é, sem dúvida, o portrait da Humanidade, no trânsito intermilenar. O mundo globalizado, assim, parece determinar outros comportamentos, nos quais as diferenças serão esmagadas pela unidade daquele.
Desse modo, é peremptório asseverar que não existe uma crise do pensamento psicanalítico como fazem os terroristas de plantão, que adicionam absolutamente nada de salutar à coisa - das Ding. O que há, com efeito, é uma crise do pensamento em sua totalidade, mais especificamente da Metafísica; ordenamento lógico e epistemológico do homem ocidental.
O representante do Ocidente está em crise;  o principal ator da história amarga sobre si uma noite, quase eterna, causando-lhe a angústia e a náusea, de acentos sartrianos. A sua linguagem o torna refém de uma realidade limitada; reduz, consideravelmente, o horizonte daquele, furtando-lhe a possibilidade de tensionamento entre o visível e o não - visível. Por conseguinte, qualquer tentativa de verticalização está / estará fadada ao fracasso, em princípio.
O Homem, na virada do século e do milênio, simultânea e ambivalentemente, estará em crise porque estará no turno da passagem; em trânsito. Contudo, cumpre salientar que o homem decadente não dista da geração do século in extremis ( a vigésima centúria ) como se fosse um elemento, uma fábula saída de profecias; ou, quiçá, um ser fincado num futuro previsível. Este, de forma plena e cabal, é o Homem da travessia que, em última análise, será o próximo enigma a ser desvendado; seja pelo Si, em reflexo angular, na superfície do speculum, seja pela esfinge, fantasmagórica, mortal e necessária, a destilar, soberana, fome e mazelas por toda terra.
O século XX fora, indelevelmente, o tempo do sujeito, em que a voz do Eu, paradoxalmente, massificou a realidade de um homem dito tecnológico, e, provocou, concorrendo para a avaria daquele, o enfraquecimento, a fissura, e, conseqüentemente, a fratura daquele. À quebra, portanto, seguiu-se a fragmentação do sujeito, debilitando seu lógos, cada vez mais complexo, cada vez mais monológico, criando, portanto, hiatos, ecos; e transformando a civilização num mal-estar sem precedentes. Este é painel no qual se configuram as questões que orbitam o sujeito, onde a sublimação começa a ser compreendida sob outros acentos; redimensionada, ampliada, e, em última instância, revisitada.
Novos ventos sopraram, e desde a retomada da letra freudiana, por Lacan, a Peste, ainda, há de causar muitos estragos, para a infelicidade dos mais céticos, que insistem em reduzir o campo de ação dos estatutos psicanalíticos bem como sua atividade no âmbito social enquanto fazer terapêutico, legitimado por um método e por um saber próprios. À época de sua aparição, a Psicanálise, vista como a cura de todos  os males, causou estranheza à humanidade de então; hodiernamente, no entanto, atesta-se a possibilidade de uma crise concernente à discursividade e ao modus operandi daquela, constituindo-se, desse modo, uma visão assaz míope sobre o universo psicanalítico.
Ora, se há, em verdade, uma crise no pensamento ocidental, e, portanto, da Ciência, que representa os atores daquele, há, indubitavelmente, uma crise do lógos. Neste sentido, o diá-logo está temporariamente (inter)rompido (?). Conseqüentemente, este é o início do tempo da escuta; o tempo da audiência e não da fala.. É tempo de silêncio. De um silêncio que fala nas entrelinhas. Daí o sentido e a razão de ser da Arte que, ao se manifestar na poesia, na pintura ou na escultura, sob a forma de síntese, revela o vigor e a plenitude do silêncio, através da contemplação, que dispensa signos verbais, palavras, nomes; quaisquer instâncias que delimitem o ilimitado. No círculo que nunca se esgota, a essência em seu devir fundador - a poiesis.
Nesta diretriz, o Homem que se compreende como entidade globalizada não parece livrar-se do deserto, cuja extensão alonga o olhar melancólico daquele, rumo a um horizonte cada vez mais remoto de sua consciência, e que, por sua vez, está  mais turva; mas, antes, vislumbra o acirramento da própria crise, em seu percurso histórico, transformando-o, para além do fragmento, na vítima de sua obesa solidão; da afasia do ser que se perde no lógos em tomos cifrados e ininteligíveis. O Homem, desse modo, materializará, na prática, a metáfora da lendária Torre de Babel. O seu conceito de unificação, eliminando as diferenças em detrimento das linguagens midiáticas, no trânsito que ainda não terminou, não concorre para dirimir as dúvidas existenciais ou para seus saldar débitos com sua consciência planetária. A crise do ator da História, um fenômeno mundial, adensará o estado barroco dos dualismos, das ambigüidades e das hipérboles, por um lado, e promoverá conflitos de outra ordem, ainda sem face e sem corpo definidos, por outro lado. A Humanidade tornar-se-á um sujeito singular de uma crise também singular: a de Ser. Crise calcada nos simulacros, nos hologramas, nas telas virtuais; gerando, implacavelmente, a perda irreparável da identidade.
A Psicanálise, segundo a postulação freudiana, não promete paraísos, mas, no âmbito de sua atuação, denuncia a existência dos prováveis infernos, e ensina a todos a convivência equilibrada e pacífica com tais realidades, díspares e contraditórias. O Homem não precisa acordar de seus sonhos, mas, também, não poderá impedir seus pesadelos, que são / serão necessários para a construção de sua verdade. Eis o mistério do lógos: a escuta abissal do Eu, através da fala do Inconsciente. Do caos à organização, a esperança do encontro com as vozes perdidas do Eu, que se pulverizou nas ilhas tecnológicas da contemporaneidade.
A Psicanálise é a Peste que resiste aos infortúnios do tempo, às críticas que visam desconstruir seu aparato científico; ao antídoto de oportunistas que tentam invalidar a legitimidade de seu discurso em um tempo marcado pela derrocada do sujeito e pelo desequilíbrio das realidades coexistentes, em um mundo rebatizado pelas letras www.
É imperioso ratificar, no percurso dos traços mnemônicos, que a Psicanálise não garante a redenção de almas, mas, também, não se circunscreve no espaço da crise, que tanto se apregoa aqui e alhures, pois a grande descoberta dos estudos metapsicológicos, empreendidos por Freud, fora a revelação do aparelho psíquico e a natureza do Inconsciente, cuja fala não está sujeita às corrupções das linguagens humanas, sempre convencionais, sempre arbitrárias. Assim, a Psicanálise, com seu arcabouço teórico e prático, respectivamente, e com a ampliação de suas fronteiras dialógicas, consolida seu lugar entre as formas de compreensão do Homem em sua realidade psicológica, psíquica, metapsicológica e psicossomática.
Por este turno, se o Inconsciente se estrutura como linguagem, segundo o mestre Lacan, que renovou os  estudos freudianos, cumpre ressaltar que é sobre este Inconsciente que a reflexão tem / terá de repousar seus parâmetros e suas sentenças de verdade, para atualizar o pensamento psicanalítico, na era digital, sob pena daquele padecer de uma crise crônica de representação no Real, que, progressivamente, tende a obliterar as diferenças.
O como lacaniano é, em última análise, a senha infalível para a escuta do silêncio, assim como fazem os poetas no fluxo contínuo da linguagem poética, que se apresenta ao mundo sob o fabuloso véu das máscaras e dos fingimentos. Aliás, na cena aprazível das realidades lúdicas, as esfinges existem para serem decifradas, e não para devorarem os homens; e, com certeza, a Peste está mais viva do que nunca. Quem ousará matá-la?

30 de maio de 2011

Sujeito e Objeto: duas faces de uma moeda singular.


O sujeito nasce de um corte; de um corte abrupto, violento, fatal, e, portanto, definitivo. Corte que é dado a partir do efeito dramático causado pela castração do Pai na horda primordial - lei regente sobre a inextrincável rede de humanos em suas relações sociais e psicossociais.
Neste direcionamento, o Sujeito, modulação egóica, que está "sob o lance" - sub jectum -, não deve / não pode ser considerado uma instância ou um elemento visível, ou, ainda, algo fadado ao aparecimento determinado pelo acaso como acontece com outros eventos conhecidos na realidade objetiva, marcada pelo ato de nomear. Desse modo, para além da existência e da essência, o sujeito é um móvel neutro em processo de valoração e revaloração contínuas.
O fenômeno que atesta o aparecimento do Sujeito paradoxalmente se presentifica em seu próprio ocultamento. Velando-se e desvelando-se, em conjunção com o Real, o Sujeito ascende à condição psicológica a partir do duo presença - ausência. Assim, mediado pela Linguagem, sua espinha dorsal, aquele plenifica seu estado de completude na aparência, onde a essência é recalcada pela voz recôndita do inconsciente, permanentemente natural, selvático, originário, e, afortunadamente, poético. Este processo deflagra o movimento do Sujeito enquanto categoria constituinte e constituída; i. é, a circularidade é a dinâmica inequívoca da rubrica do EU nos processos biológico, sociológico, e, por fim, psicológico. Ser sujeito, neste sequenciamento analítico, é ser menos transparente do que ser objeto. O sujeito se apresenta difuso, opaco e nebular diante do Outro; e a Alteridade - o objeto - é o alvo claro, definido e perseguido, de forma obsessiva, na relação dominante, dominadora e, por conseguinte, imperativa do EU versus OUTRO.
Se cabe à Psicanálise, dentre outras competências, primar pela relação Sujeito - Objeto, privilegiando os limites e os não - limites entre o EU e sua ALTERIDADE, a instância do subjectum buscará sempre uma relação sexualizada com o objeto que lhe complete. O Eu, acidentalmente formado por vazios infinitos, intenta o preenchimento de suas lacunas originais para a manutenção razoável de seu equilíbrio aparente. Portanto, é mais coerente que se afirme que a verdade subjetiva tende a descambar, por vícios fundamentais, para uma parcialidade impositiva, no que concerne à totalidade ideal daquela sentença de verdade do que o seu contrário.
Parece-me, com efeito, que a verdade objetal é mais totalizante, pois, na relação SUJEITO - OBJETO, a segunda instância aparece para completar silenciosamente o sentido de ser do sujeito; este último, ávido por saciar seus desejos, sejam de que natureza forem. É como o toque mitológico do Rei Midas, que, ao tatear tudo aquilo que passava por suas mãos, por causa de sua vontade soberana e incontestável, se transformava em ouro. Assim é o Sujeito, pois este é, indubitavelmente, o responsável pela transformação de todas as realidades circundantes, desde a mais ínfima e invisível à mais complexa,  perceptível e imperceptível para o olhar humano, em última escala. É, ainda, o Sujeito quem promove o despertamento, quando toma para si o Outro; o seu objeto.
Sabe-se, contudo, que a relação Sujeito - Objeto não se pauta em uma unilateralidade pacífica e conformadora entre as partes envolvidas. A medida do Sujeito será definida pelo Outro, pois o processo que determina a essência do sujeito, simbioticamente, na relação e co-relação de forças entre as duas faces de uma moeda de imagens indissociáveis, é  / deve ser determinado pela simultaneidade, pelo câmbio, pela bilateralidade na equação sujeito x objeto = objeto x sujeito, estabelecendo, invariavelmente, a cadeia virtuosa, necessária e neurótica do eu e de seu desejado objeto.
Mário de Sá-Carneiro, poeta luso, que viveu em fins do século XIX e desapareceu na decadência epocal, legou, para a literatura universal, pérolas inestimáveis, em sua prodigiosa lírica, e que transporto para esta reflexão a fim de corroborar o presente ideário. No poema intitulado 7,  a voz poemática declara:

                                         Eu não sou eu nem sou o Outro
                                         Sou qualquer coisa de intermédio:
                                               Pilar da ponte de Tédio
                                              Que vai de mim para o Outro.* 

Ao sequestrar as palavras do poeta português para o que proponho nesta "tessitura psicanalítica", comove-me, sobremaneira, o intermezzo que o eu-lírico no poema transcrito acima denuncia, para além de um poeticismo marcado por dubiedades ou hesitações de um ser sobre o fio mortal da navalha; i. e., a sua existência misteriosa, incompleta e de cartilagem barroca. 
Desse modo, cumpre ressaltar que é no espaço do intermédio que a relação sujeito - objeto se forma, consolidando o processo de equilíbrio das forças vetoriais no qual a carga de representação do sujeito escoa em proporção similar àquela a ser demandada pelo objeto, promovendo, por fim, a bilateralidade da relação, com suas semelhanças e dessemelhanças. A diversidade deverá convergir para a unidade nos traços de uma subjetividade que deseja e de um objeto que é desejado. O sujeito, por esta via, não é mediado apenas pela Linguagem que configura no Real as representações do Eu e do Outro, mas, é intermediado pelo objeto que emerge triunfante diante do olhar sexualizante do sujeito, sob a égide colossal do Wunsch (Desejo).
Neste sequenciamento, cabe evocar, portanto, a identidade narcísica que naturalmente está incrista em todo ser que se descobre na condição de sujeito, pois, aquele, ao se revelar como sujeito, revela-se como objeto, e, ao se revelar como objeto, revela-se como sujeito - trilhas de um jogo espetacular e especular. 
A descrição acima referida remonta ao conceito freudiano sobre as pulsões de vida e as pulsões de morte; Eros e Tânatos na cena primeva do Caos - dimesnsão cosmológica e mítica na qual repousa, arquetipicamente, a ancestralidade sexual da Humanidade.
Com efeito, na relação sujeito - objeto, a parcialidade da verdade subjetiva preponderá sobre a do objeto. Esta afirmação, aparentemente cristalina, revela a face oculta do paradoxo. Ora, se o sujeito é aquele que atua na realidade, através de seu desejo sexual em relação ao seu objeto, aquele, movido pela ânsia da busca constante, tentará, incansavelmente, atrair para suas fronteiras o seu objeto. Logo, este cortejo logrará êxito por uma verdade parcializada pelo sujeito, que deverá ser capaz de ludibriar o objeto desejado. O desejo sexual, portanto, transformar-se-á no desejo erótico.
Ao contrário do sujeito, o objeto se expõe - ob - jectum (lançado para fora), permanentemente. Por esta via, cabe assinalar que a verdade do objeto será mais imparcial na medida em que se tornar complemento de seu sujeito desejante. Despertado para sua função objetiva, o objeto equilibrará um conjunto de forças totalizantes, expostas e dispostas em relação ao sujeito.
Ser objeto não implica asfixiar o desejo, que é parte integrante do grande cortejo, pois a Psicanálise, ao eleger o estádio do desejo como uma de suas investigações centrais, busca rastrear, no desvelamento da realidade, o momento preciso em que o sujeito alcança o seu objeto no trajeto inequívoco da Linguagem, onde a relação se inverte, eclipsando o duo desejante - desejado em uma superfície comum, singular.
A menor imparcialidade do sujeito ou a maior exposição do objeto confere à prática da ação incontinente do desiderare o élan fundamental para que a Psicanálise se constitua como porto de ancoragem de todas as reflexões sobre a sexualidade e seus desdobramentos factíveis.
Para além da representação simbólica do sujeito e do objeto e sua modulação no psiquismo, é o Desejo (Wunsch) que pontifica a relação dual, pois a conexão entre desejante e desejando é, per si, a manutenção do próprio status da realidade que, ao ser codificada, se torna o instrumento vivo e adequado para que a ação efetiva do desejar seja elevada à estatura plena do sexual, em todas as suas configurações.
O corte final é abrupto e violento, e as cortes são cessadas: o Homem não é o ser dos instintos, mas o ser das pulsões - Trieb.


Referência:

*  CARNEIRO, Mário de Sá. Obra completa. Vol. único. Rio de Janeiro : Aguilar, 1995.
  

17 de maio de 2011

O instinto da sexualidade e a onto-análise: convergências teóricas



Antes de o Homem ser racional, ele é, acima de tudo, animal. Questão de base naturalista que ancorou o pensamento da ciência no século XIX. Neste sentido, é imperioso afirmar que a questão da sexualidade parece preponderar sobre as demais, a meu ver.
Com efeito, o que move a espécie humana diante da vida, compreendida como um mecanismo dinâmico  marcado por fases distintas, é, sem dúvida, o instinto inicial de uma sexualidade nascente, e que revela, para além do status biológico do próprio Homem, a condição psíquica do ser dos contrários, através de suas relações onde o duo consciente - inconsciente opera a cadeia das significações do instinto, do impulso, e, por fim, da carga energética, que define o processo de sua atividade sexual.
Se, por um lado, o instinto incial (re)liga o Homem às animalidade e ancestralidade primevas, concomitante e respectivamente, revelando aquele como elemento que emerge da physis, por outro lado, o mesmo instinto o
(des)liga abruptamente do estágio genuíno de barbárie, do qual surgira, para assumir o movimento pendular na cena da cultura, transformando-o, em última análise, no ser das tensões. A partir daí, a sua relação com o Real se dá, impulsivamente, através do instinto de sexualidade, cuja ação se dá em quatro etapas distintas, até sua  completa diluição enquanto impulso constante. Por esta via, portanto, o Homem, inicialmente, encarna, em seguida, retém, depois condensa, e, por fim, detona a própria carga de tensão, que determina, dentre outras características, o perfil daquele no espaço da civilidade. Civilidade construída e desconstruída, cíclica e constantemente, sob o estigma sisifiano dos primórdios.
Esse percurso, ora dialético, não torna o Homem um agente menor ou maior diante da realidade que estabelece o seu espaço vivencial, mas, antes, é suficientemente capaz de produzir uma onda crescente de aceitação daquela realidade, que oportunamente denomino ajustamento em um determinado limite por ele estabelecido; e que, por sua vez, cria, de forma espontânea e inevitável, os nódulos tensionais. Tais nódulos submetem o ser racional, que somos, às leis instintivas e animalesca de uma sexualidade originária.
O ato sexual, compreendido como uma ação eminentemente biológica entre dois seres humanos, serve para demonstrar, pelo lado físico, a liberação das tensões; as descargas orgânicas, que podem ou não conter amálgamas de afetividade. 
Já o ato sexual, reconhecido como fonte de erotismo e como ação impulsiva de dois corpos, na gradação máxima de um ajustamento instantâneo, detona o ser contido dos protagonistas da cena sexual, deixando-os livres de si mesmos; à deriva; desfeitos e/ou descontruídos, eu diria, em um tempo mais do que corpóreo, cujo ápice é traduzido pela atividade geradora e mantenedora do prazer. Prazer que expõe fundamentalmente o ser dos corpos individuais e o Ser universal em toda sua plenitude.
O ato sexual visto como relação matrimonial não terá outro fim senão o da procriação da espécie, respeitando os códigos da civilidade imposta pelo próprio Homem, e levada a termo com todas suas implicações sociais. Quaisquer desvios das normas serão objetos de estudo de um psiquismo recalcado por um superego tirânico e coletivo.
Importa salientar nesta análise que, não excluindo o sentido cultural que deflagra o processo de procriação, propriamente dito, que é, efetivamente, o da perpetuação da espécie, interessa-me, sobremaneira, a animalidade que faz dois seres, em princípio, buscar a união, sob os mais variados propósitos, para a manutenção do casamento enquanto instituição sócio-religiosa, cuja base contratual é, por excelência, a econômica.
Poderia, neste artigo, explanar as várias faces de uma moeda singular, porém, quando advogo a tese do instinto sexual do / no Homo, como força propulsora de / em todas as relações do Homem com a Alteridade, estabelecendo uma relação mais do que bilateral, e dele com seu meio circundante, reificado ou não, investigo, nos tais nódulos tensionais, já mencionados anteriormente, a progressão, em cadeia, dos atos essenciais e culturais a partir de uma psicanálise existencial, se tal redundância comportar ecos plausíveis.
De Sigmund Freud a Georges Bataille, em consonância com o pensamento de Martin Heidegger, renovando a interpretação de Paul Ricouer, além do timbre necessário de Winnicott, em princípio, parece-me que a questão sobre o Ser e seu movimento angular, a partir de uma sexualidade primeva e sua respectiva esfera de alcance, fora vislumbrada, a priori, mas não aprofundada, a posteriori.
Cabe-me, pois, erigir um ideário de posicionamentos e de questões relevantes, no sentido de que representavam uma camada intermediária da principal, à época, e que não foram objetos de investigação e de interesse principal de vários teóricos, que se ocupavam com o universo do psiquismo, e que ora elaboro, dadas as proposições lógicas que conduziram as diversas posturas filosóficas e críticas daqueles na história da Filosofia, da Psicologia, da Psicanálise e da Sociologia, cujas águas têm invadido, nos dias atuais, o discurso metapsicológico.
Se, por um lado, os pensadores aos quais me referi acima perceberam, em suas trajetórias, as questões essencias do Homem, enquanto sujeito que se descobre em profundo estado de reflexão, paradoxalmente, por outro lado, não reconheceram os pontos vitais de uma ontologia que, no seu devir, apontava para o declínio daquele, e que, em nome de uma modernidade high tech e materialista, distanciava-o de uma linguagem uníssona, de tônus inaugural.
A despeito disso, portanto, insisto na hipótese de que pensar o Ser em toda sua complexidade, a partir de um institnto, que é o da sexualidade, é atribuir-lhe outra configuração, penso eu, e carente de elaborações congêneres; é recolocá-lo na ordem do dia, ressignificando o dito instinto primordial, que surge em uma efera anorgânica - Winnicott -, ganha força nos impulsos sexuais - Freud -, e universaliza-se na reflexão filosófica da letra psicanalítica - Lacan.
Em última instância, é pensar os limites, na coletividade contemporânea e extemporânea, da própria Psicanálise, que, no espaço de/em crise, projeta seus referenciais para tempos vindouros, renovando seu estatuto e reinventando sua linguagem, através de uma epistemologia que nasce das interações marcadas pelo instinto de sexualidade, de acentos e representações múltiplas.
Outrossim, assevero que não é meu intento desfazer postulados, arduamente construídos pelos ícones do pensamento psicanalítico, desde o seu nascimento até à contemporaneidade, mas, antes, oportunizar reflexões, adicionando-as às discussões já existentes, sob a tese da ampliação e do redimensionamento dos espaços e dos limites da Psicanálise nos dias atuais; seu modus operandi e seu objetivo final.
Ainda que o pensamento freudiano determine que a sexualidade como a conhecemos está localizada no psiquismo, obedecendo a mecanismos próprios, não devemos obliterar nem tampouco extrair da natureza humana o predicativo fundador daquela, i. e., o seu traço primordial que a torna um elemento instintivo, mantendo-a permanentemente ligada ao mundo natural tal qual se dá com todas as espécies animais espalhadas no planeta.
Finalmente, cumpre esclarecer que este texto é fruto de uma pesquisa que se instaura a partir da sexualidade humana, sua origem, seu determinismo, seus reflexos, e, sobretudo, sua atuação na grande transição que o Homem empreende, ao atravessar os portais do novo milênio.


3 de maio de 2011

A fenda, o abismo e o silêncio: (con)figurações da subjetividade

Os estudos psicanalíticos, por via freudiana, desde a fundação da Psicanálise, não concebe o Homem como substância plenificada de sentidos cuja atuação na realidade objetiva se dá pela completude de sua existência. Ao contrário: é sob o estado movediço da incompletude que o protagonista do sujeito se lança como móvel representativo da dualidade, da dubiedade, da contradição, e, por conseguinte, dos estados nevrálgicos que acometem a psiquê, ao ser compreendida esta última como consciência em contínuo estado de formação.
Ser consciente, portanto, é mergulhar, de forma radical, na inconsciência que nos transforma no agente do lógos, do pensamento, e, em instância ulterior, da razão. Tal condicionamento, se, por um lado, coloca o Homem em rota de colisão, pois o vetor da consciência sofre o peso da âncora dos valores da cultura e das leis regulatórias, castradoras, proibitivas e coercitivas, denominada aquela por SUPEREGO, por outro lado, a nossa verdadeira identidade, recalcada no INCONSCIENTE, nos liberta das amarras do mundo marcado por um mal - estar civilizatório, em consonância com Sigmund Freud.
Entre a consciência, que mascara o céu que não possuímos, e a inconsciência, que revela o inferno que somos, a razão é, desse modo, o câmbio flutuante de nossas emoções, que, se não tende à degenerescência, pois é virtual, também não se torna o porto seguro - tópos ideal do ser humano, que vislumbra no sonho a perfeição que jamais alcançaremos na vida compreendida como processo de formação do sujeito. Nesta  configuração triangular, a subjetividade é corroída por uma ferrugem que não molda o sujeito, em sua instância egóica, mas, antes, mina as estruturas daquele, concorrendo para o estado de crise permanente no qual todos estamos, desde o nascimento até o desenlace.
Não existem sujeitos perfeitos. Não há subjetividades formadas. No sujeito e na subjetividade há vãos consideráveis nos quais o psiquismo, por ser uma fornalha dinâmica, age, reage e / ou retroage, dependendo dos processos endógenos e exógenos, respectivamente, pelos quais a entidade egóica passa. Sem estas ações hostis, sem este quadro, aparentemente selvagem, o ser humano não atinge o estado de sobrevivente no mundo. Para atravessar a ponte, o deserto, a escuridão, qualquer que seja a metáfora que utilizemos para denotar a realidade da esfera na qual o humano se circunscreve, é importante que reconheçamos as imperfeições que delimitam a nossa existência, e, simbioticamente, a nossa essência. 
Nesta diretriz, a Filosofia, a Religião, a Psicologia e a Psicanálise atravessam encruzilhadas similares.A primeira  se preocupa com o movimento angular do ser e sua representação no Real, através da atividade do pensamento. A segunda tem como objetivo apontar na falha do sujeito a necessidade da busca, e, claro, da presença de uma entidade sobrenatural para que alcancemos o equilíbrio. A terceira envida todos os esforços metodológicos e clínicos para ajustar o sujeito e mantê-lo integrado na malha social. A quarta visa à conscientização dos estados perfeitos e imperfeitos que moldam o sujeito, não prometendo a este último a cura de todos os males, mas a capacidade de lidar com as realidades diversas e adversas que atingem e compõem a nossa personalidade.
Claro está que em todas as descrições conceituais elaboradas acima percebe-se cristalinamente a condição do Homem na acepção de sujeito. Qual seja: as subjetividades de todos os indivíduos que se compreendem por existentes estão carentes por alguma coisa; estão adoecidas, e, portanto, precisam de tratamento. A tese da incompletude, abordada no início desse texto, é a constatação inequívoca de que ninguém na face da Terra goza de uma saúde plena e incorruptível ao nível do psiquismo. Eis aqui o idealismo, e, portanto, o sonho. Na utopia, a inexistência ou a eliminação de todas as doenças que podem nos acometer, inclusive as perturbações de ordem somática e psicossomática. Na realidade, um aparelho chamado de psíquico, que, movido pelas pulsões de vida e de morte, respectiva e concomitantemente, luta para sobreviver nas selvas de pedra que construímos para a nossa própria ruína.
A falha que nos constitui como sujeitos em crises, açoitados pelas neuroses ou naufragados pelas psicoses, é a fenda que descobrimos quando reconhecemos que o que nos impulsiona na realidade é a atividade ininterrupta do Desejo. Assim, sempre desejamos algo; desejamos alguma coisa; desejamos muitas coisas; desejamos um universo impensável de coisas, e que nunca nos satisfaz. Logo, a busca pela satisfação de nossa vontade consciente nada mais é do que a perseguição incansável do nosso inconsciente, que funda no desejo a pátria da realização de todos os nossos sonhos e projetos de vida - processos que são mensurados pela tentativa constante, mas não pela realização integral daqueles. O desejo, por seu turno, implica prazer, e o prazer é o objetivo principal de toda cadeia significativa e metassignificativa do Eu, no circuito do aparelho psíquico. 
Uma vez percebida a fenda em nossa constituição psíquica, há, inegavelmente, entre o ideal (o desejo) e o real (a satisfação) um abismo considerável, que nos obriga a refletir sobre a nossa condição temporal, finita, e que nos torna reféns das patologias que atingem o aparelho psíquico no mundo contemporâneo; todas sob um guarda-chuva crescente chamado stress.
O silêncio - a ausência da palavra que não desconstrói a essência da verdade, mas potencializa, de forma simbólica, o valor do lógos -, se transforma na última parada de uma estação ferroviária, onde psicólogos e psicanalistas encontram na clínica (o fazer terapêutico) o exercício de escuta do Outro, que, operando o diálogo, percebe as fendas e os abismos que dispõem analistas de um lado e analisandos do outro.
Na fenda do eu, o abismo do Outro; no silêncio do eu, a palavra do Outro; na subjetividade do analisando, a verdade do analista. Todos sob o véu atraente do Desejo. Desejo de falar, desejo de ouvir e desejo de se calar, configurando e reconfigurando as subjetividades possíveis.



25 de abril de 2011

SOB O ESTIGMA DA PALAVRA: O NASCIMENTO DO SUJEITO


Desde a consciência mais primeva, que nossas mentes podem recordar, sobre a origem do Homem, na condição de personagem que protagoniza a cena do pensamento, no meio do mundo natural, até à redescoberta de nosso papel, nas sociedades pós-informacionais, somos / estamos, com efeito, timbrados com a tinta inapagável da PALAVRA no corpo e na alma. Palavra que inaugura a mobilidade reflexiva, nos anais da Filosofia e da História, e que nos classifica como seres primos, também no campo da cultura. Física e Metafísica parecem convergir para um ponto singular: o universo possível da palavra e seu rastro para além do tempo e do espaço.
As culturas planetárias, através de suas mitologias e suas linguagens modelares, nos legaram o fascinante e o fatídico véu da palavra. Assim, sob o véu misterioso daquela, o mundo surgiu, apareceu, eclodiu; emergiu como fábula das trevas alucinantes para figurar como elemento redentor e perfeito no meio do Cosmo. Milagre, plano da criação, discurso religioso, lenda, mito, verdade e / ou não-verdade, o fato indelével é que tudo que é perceptível ao nosso olhar, inclusive a nossa própria imagem plasmada no espelho, nasceu do fenômeno ímpar advindo da palavra, na condição de verbo fundador e nomeador de tudo que existe no mundo. 
A nossa existência, calcada na palavra fundadora, é a causa do Ser e de sermos o que somos, na morada que chamamos de planeta Terra. Palavra que é lógos, lógos que é fogo, fogo que revelou a luz primordial aos homens e deu-lhes o conhecimento que antes pertencia aos deuses. Reside nesta sentença, portanto, a condição humana de ser: o verbo. Por meio da palavra, o nada gerou o tudo e o não existente transformou-se no existente. O Homem está situado na atraente e enigmática equação que determina a sua consciência. Qual seja: não éramos ( não - ser), passamos a ser ( somos ) para, finalmente, deixarmos de ser ( não - ser). Setença que não pode ser fraturada e que nos aprisiona em labirintos mortais, tornando-nos reféns de uma angústia universal e eterna.
O sujeito nasce no momento em que a angústia nos rouba da pseudo paz que pensamos gozar porque, um dia, adentramos o mundo do conhecimento - sempre crescente, inesgotável; sinônimo de Abismo; precipício vertiginoso que nos faz tombar como Ícaro, que, encantado com o vôo, descobriu no desejo impetuoso de ser Deus a sua própria desmedida.
O lógos, na condição de força que engendra no mundo o não - saber, é, também, o vetor que nos impele para a redenção do nosso próprio ser: o de ser sujeito no Real, com todas as suas gradações - da mais densa e visível à mais diáfana e não visível aos olhos humanos. E assenhorar-se do lugar da subjetividade, que é o que nos diferencia das outras espécies animais no mundo, é certificar-se, acima de qualquer especulação, de que a consciência de ser sujeito descortina outra realidade para o sentido de nossa existência limitada pela palavra que nomeia e ilimitada pela linguagem que nos liberta: a constatação inequívoca de que, para além do corpo físico que nos constitui biologicamente, portamos algo que jaz na anterioridade de nossas representações primevas e arcaicas - a nossa alma; ou para sermos mais precisos, a nossa psiquê.
Ora, se, por um lado, recebemos o lógos divinal e fundador, chave de acesso para o autoconhecimento, o conhecimento do Outro e da realidade que nos circunda, por outro lado, redescobrimo-nos como entidades ontológicas, cuja nascente verte da nossa alma, a nossa inefável psiquê. Desse modo, o sujeito é o resultado de uma adição matematicamente perfeita: o verbo, de matizes infinitas, e o psiquismo, que revela a nossa verdadeira face, através do deslindamento das realidades internalizadas do nosso ser: o Id, o Ego e o Superego - instâncias nas quais o pensamento se transforma em atividade de prazer, e o ser ultrapassa o sentido basilar de mera ação reflexiva ou pilar de nossos instintos mais bestiais ou primordiais.
Ao reconhecermos o sujeito como entidade fundada pela palavra, admitimos que a psiquê é o fundamento puro da Linguagem, que, no plano do simbolismo, poetiza o verbo e o desloca para o inconsciente - sentinela de nossa verdade absoluta e impressão digital de nossa alma, cuja concepção nos estudos metapsicológicos  não descamba para o abstracionismo impreciso, mas, antes, reconfigura o aparelho psíquico, que nos torna filhos do lógos ígneo e misterioso e atores na cena do desejo: desejo que faz da alma a fábrica de sonhos, prazeres, desprazeres, traumas, neuroses, psicoses etc; desvelando, em última análise, a verdade que tece o sentido da existência humana. Qual seja: a de ser o que somos e o que deveremos ser, sempre, e não o seu contrário. Paradoxo? Sujeito e verbo se confundem no psiquismo porque a verdade da alma é a tessitura do próprio ser, que, no inconsciente, surge como fogo eterno e ilumina o ser metapsicológico, que somos, através da infindável cadeia das representações que se desprendem como fagulhas na realidade, renovando a  letra psicanalítica e, por conseguinte, sua linguagem para além dos estatutos lógicos da objetividade científica.