4 de junho de 2013

FISSURAS DO SUPEREGO E SUJEITO ESTILHAÇADO: ENIGMAS EM (RE)CONSTRUÇÃO


As sociedades contemporâneas na virada do milênio distam, radicalmente, das noções germinais, que permearam as correntes sociológicas, e, que, no início do século XX, definiram o perfil do Homem no modelo civilizatório da modernidade, à época. Acerca deste modelo, especulações constatações, reflexões e diversas teses foram realizadas a fim de que houvesse uma tentativa mais objetiva, cujo intento era, precipuamente, o de aproximação da personagem histórica, o Homem, do cenário mais convincente, no qual a sua identidade estaria em processo contínuo de construção: o código social. Por este raciocínio, é lícito afirmar que entre a percepção de uma realidade, que concorreria, sobremaneira, para a construção de uma identidade, a partir do estatuto social emergente, na decadência secular, e a tentativa de manter, no centro da questão, a complexidade que perfaz o sujeito do tempo das máquinas como cédula artificial, vislumbra-se, de forma indubitável, o reconhecimento da existência de um abismo gigantesco, que promoveu a excentricidade das individualidades, no risco do próprio descentramento de seus eixos estabilizadores na realidade circundante, em constante mutação; na trilha íngreme para o esfarelamento daquilo que não se pautava como sólido na realidade aparentemente sustentável. A despeito desta oportuna postulação, impõe-se uma reflexão: será tal configuração uma ilusão quase real, um sonho enebriante, um oásis fugaz ou um devaneio eterno?


Em cada grupo social, há e haverá sempre leis e princípios que espelham a realidade daquele. Neste sentido, as células, em conjunção multíplice e em processo contínuo de transformação, deveriam ser o reflexo potente da infinidade de subjetividades, que parecem traduzir a verdade de um tempo histórico, cultural e psíquico, por excelência. A introjeção de valores, que são, nada mais, do que vetores representativos de todos os elementos exógenos e que corroboram, sobremodo, para a formação de cada indivíduo, na sociedade, em seu formato genérico, nos dias atuais, provoca a distorção de realidades, que, díspares, não são módulos geminados; antes, são fatos e paisagens dessemelhantes e em desvio permanente na sociedade, paradoxal e forçosamente balizada, nos dias atuais, pelo código digital. O inchaço e o imbricamento das linguagens representativas de culturas distintas, no mundo globalizado, são marcas de uma estrutura superegoica, que se move em águas inquietas como se fosse uma nau à deriva. Se esta constatação é válida para os limites do Superego, como definir, então, o traço identitário do Homem, nas ilhas informacionais, em que se constituíram os ambientes sociais do século passado? O sujeito individual traz consigo a sombra de um sujeito universalizante. Uma cultura local ou regional carrega o peso de uma civilização de modelo planetário. Conclui-se, a priori, portanto, uma crise dupla: o superego, que adentra o Inferno de Dante, e que, sob turbulências avassaladoras, é atingido por fissuras de toda ordem. Na ponta extrema, está o sujeito, que, fragilizado, se perde nos estilhaços de uma linguagem em estado de corrosão progressiva e, simultaneamente, decadente.


Há muito, o Homem se afastou da superfície lacustre original, onde rostos eram atraídos por um brilho narcísico e identidades eram eternizadas por paixões letais. Não está em pauta o mito ou a tragédia universal, mas a representação de alguém que ultrapassou o sentido mitológico daquilo que não deveria ter sido; e que, na contramão, sendo, desmediu as leis possíveis e plausíveis de uma civilização, à beira de um colapso sem precedentes na estória da Humanidade. Antes, pela visão eurocêntrica, as questões orbitantes, em torno de um mundo com um perímetro menor ou vislumbrado como uma porção de terras, onde a civilidade deixara suas marcas de uma possível maturidade, pareciam ter algum sentido, ainda que uma estrutura virtual pudesse suportar preceitos, princípios, teses e antíteses de um modelo cultural e dito civilizatório, ao tempo em que a Peste se consolidara como via emergente para observar e compreender o Homem, na condição de ator de um psiquismo, ainda à mercê de investigações mais consistentes. No entanto, em uma realidade planetária, que abriga, atualmente, mais de 7 bilhões de pessoas, em uma teia pesada e com uma trama cada vez mais complexa, crescente e esférica, a conceituação e a atuação do Superego, em seu modelo fundacional, não correspondem à realidade cultural, em tempos pós-cibernéticos, que, por sua vez, não se limita ao risco geográfico de um continente envelhecido, mas transpõe, exponencialmente, todos os lugares na aldeia global. O Superego desmesurou suas fronteiras significativas e busca, desse modo, a sua reinvenção para sustentar-se como condutor de uma realidade em terceira dimensão e resguardar, como um grande guarda-chuva, o seu habitante comensal: o Homem. Neste jogo histriônico e insaciável, o sujeito, atraído por seus desejos mais bestiais, em um modelo capitalista, que recalca monstruosamente a fruição em nome de uma sistema, que, por conseguinte, investe na ansiedade, no falso hedonismo e na compulsão mórbida, é tragado como legume verde em uma centrífuga e se desfaz em ínfimos pedaços daquilo que um dia foi sem saber o quê ou quem, para, finalmente, ser, ad eternum, algo que jamais saberá quem poderia ser ou o quê, uma vez que, sendo o que não é, transforma-se na categoria da não - existência; no rabisco da não - verdade; no vácuo inominável, que pode ser (o) Tudo como também pode ser (o) Nada. O problema, portanto, com efeito, não é de espaços, mas, sim de linguagem. Na falha sistêmica de um mundo que se redescobre entre cabos de fibra ótica, que se configuram e se desfiguram constantemente, e ondas virtuais, que podem induzir/conduzir navegantes insólitos a ilhas desconhecidas, a grande questão é: como estabelecer as conexões essenciais para que os significados não produzam ruídos e, sim, mensagens? Hermes se perdeu em sua trajetória ontológica e a Humanidade retornou à escuridão dos primórdios.


A questão, neste sentido, rompe as fronteiras do cogito ergo sum, pois a sensação é confundida com a percepção de uma realidade marcada por um sentimento apocalíptico; de fim de mundo; algo que solapa as bases de uma cultura global, que não resistem a um ataque viral e ubíquo como se fossem práticas terroristas a aterrorizarem os cidadãos do mundo, na imensa e vasta porção continental, que se tornou o planeta Terra, sob o efeito preponderante dos plugs in. Assim, o que se constata, inequivocamente, é a desordem do The Day After. O mundo não acabou, mas é como se o fim começasse o seu percurso magenta e tempestuoso sobre todas as cabeças em rota de colisão; individualidades acometidas por um estado afásico e geometricamente progressivo. Afecção assintomática, que acidenta todas as possibilidades de decodificação de uma linguagem que, se não está emperrada pelo aparelho fonador, devido ao aprisionamento das identidades nos pólos virtuais, está, aquela, recalcada como nunca estivera por causa do excesso de informação, que, paradoxalmente, tem conduzido esta humanidade à deformação de sua identidade, de suas origens. Assim, é imperiosos afirmar que a sua imagem distorcida, longe de qualquer face especular, paira sombria em algum pântano lodoso, sem reflexo e completamente mortal - cenas de um estatuto superegoico, em cujas dobras sobrepesam uma estrutura condenada à falência total e que está, portanto, em franco processo corrosão. A indagação é: como lidar com algo tão opulento e singular; com características sui generis, sem qualquer formulação metafísica e não cabível em um modelo denominado Aparato ou Aparelho Psíquico? O pai da Psicanálise não vislumbrou o que poderia acontecer em um futuro distante e soturno; talvez mais nefasto do que aquele preconizado e que fora tornado real por um nazismo genocida e insano; patrocinado, ainda, por um ato de traição e protagonizado lamentavelmente por um de seus mais críveis discípulos: Jung, ao tempo em que Metapsicologia conquistava espaços para além dos germanismos epocais. O mal estar em Freud, com efeito, era uma antevisão do mal estar que a civilização, em convulsão acirrada, no trânsito das decadências finissecular e finimilenar, respectivamente, emergiria e detonaria uma estrutura, que, por sua importância e singularidade, deve ser reformada, sob pena de a Humanidade assistir não somente o desmantelamento de um Superego esvaziado de significação plena e de um Sujeito, de tônus universalizante, sem face, destituído de sombra e, portanto, sem heroi e fé, desfazer-se em um processo antagônico, operando contra si e em si o espetáculo da implosão e transformando-se em um ser bruto, cujo movimento seria algo para além do recalque, talvez a fossilização do Eu em camadas arqueologicamente cerradas sobre um hermético silêncio, enevoado por uma atmosfera melancólica e acentuadamente espetacular. 


A senda da reflexão proposital, que ora apresento, revela uma fenda insidiosa e inevitável: o espaço mais arcaico do psiquismo, donde se originam todas os módulos constituintes da identidade humana - o Id. Um sujeito em agravo profundo é um corpo a cair num abismo de proporções imensuráveis. A desestruturação do Superego, pondo em risco imediato a categoria universal do Sujeito, que se despedaça em fragmentos estilhaçados, pode ser uma mensagem para o fim de uma visão clássica, talvez romantizada do homem do século XIX. Entretanto, a estrutura que define o ser da psiquê não se desfaz, mas a camada egóica, mergulhada em um lençol cristalizado, não quantificável por equações matemáticas, conduz o homem dos trânsitos epocais à linha tênue, que divisa o Id do Ego. Há, neste sentido, uma confusão no que concerne à visão do sujeito e seu psiquismo, na centúria que desponta como o século da megainformação. Para além do primado da luz, como sema que indica o caminho por um lógos cada vez mais revelador sobre os caminhos da própria Humanidade em sua obsidiante tarefa, que é a do conhecimento de sua origem, há, paradoxalmente, no despertar da Ciência, em todos seus afloramentos magistrais, uma força que inclina o exercício do Cogito para o aniquilamento de um patrimônio, que tem onerado, sobremaneira, as civilizações: a Cultura, em todas as suas versões históricas e com todos seus significados universalizantes. Entre o salto quântico do homem transmilenar e o investimento no Ego, em derrocada, devido à compulsão das individualidades, há uma linha delicada, que parece apontar a vereda a ser seguida, e isto não se constitui em um receituário, mas, antes, um ponto de reflexão acerca da profunda transformação porque passa o dito homem do futuro/de futuro (?), cujas premissas causam mal - estares e instabilidades aos fundamentos psicanalíticos - da teorização à prática clínica. O sujeito estilhaçado é tudo, menos um Sujeito. O superego fissurado é tudo, também, menos o Superego. As categorias são esvaziadas por um processo antagônico, cujos vetores são manifestações endógenas diversas, em uma realidade torpedeada por informações, que não favorecem o robustecimento de instância alguma, mas à inflação da estrutura psíquica, que, debilitada e fragilizada pela natureza da crise, na qual o Homem se reconhece como sujeito neurótico, tende a ruir como um castelo de areia à beira-mar. O excesso de realidade, portanto, produz no sujeito estilhaçado dois movimentos distintos e paralelos. A saber: o recrudescimento e a alienação. A esfera assemelha-se ao espaço onírico, que entorpece mentes e consciências, em estágio planetário, e a percepção de uma nova realidade estabelece um paradigma renovado da linguagem, na transitividade da primeira década do novo milênio. Assim, há uma via estreita, divisando o real, falseado por mascaramentos de toda ordem, e o não - real, codificado por senhas, que se revelam e se transformam em sinais extraordinários, distantes da verdade egoica e organizadores de uma nova ordem. O bunker de salvação do sujeito estilhaçado é o emaranhado inconsciente, que rumina a realidade com toda sua gama de camuflagem. Na insustentabilidade do Ser, os camaleões perdem seus matizes distintivos e são devorados por seus predadores vorazes.


O recrudescimento e a alienação da instância egoica produzem uma nova interface nas relações a serem pautadas por um sujeito individual, que se coletiviza, e outro sujeito, que se individualiza, na multidão. Desafortunadamente, para o sujeito, que deveria ser o protagonista da ação em um mundo, onde a informação domina e, por esta via, seria o turno mais plausível para o escoamento de sua voz em todos os lugares, o efeito expansionista dos desejos daquele excede os limites tangíveis da compreensão, pervertendo a ordem natural e tornando aquele em antagonista de sua própria ação, que seria a transformação da realidade circundante. Por conseguinte, presenciam-se um eco ensurdecedor e pontos múltiplos de uma conexão partida. Perde-se o diálogo, perde-se o monólogo; há somente uma possibilidade remota de comunicação em meio a uma selva eletrônica, onde as palavras têm seus significados corrompidos. Logos corrompido, portanto, é foco de uma clareira aberta na floresta em chamas. Há, afirmativamente, um sujeito destoando da canção original, e a poética do ser está dessintonizada dos acordes de alguém, que deseja buscar o eldorado tão sonhado, tão almejado. A narrativa não é legendária; é, acima de qualquer especulação, o mapa da redescoberta de Si. Egos fraturados, superegos desmantelados e a força animalesca de um Id compõem o cenário de um filme de ficção científica ou de uma lenda urbana, em tempos de atmosfera retrô, minimalismos de toda sorte e uma realidade em terceira dimensão. Os efeitos visuais da realidade em vigência desafiam, por este turno, o sujeito, que, antes do estilhaçamento total, é uma corda esgarçada in extremis, que arrebenta devido à banalização exacerbada do Eu ao repercutir a voz da Alteridade, promovendo, desse modo, a sua consequente anulação. O eu não é o mais o eu. Que instância do psiquismo será, pois, então, o Ego? Em stand by mode, o sujeito é refém de dados, que navegam, de forma aleatória, representando cédulas incompatíveis com a sua natureza. O eu universalizante é uma faca afiada para a degola do sujeito que, capitalizado em excesso, está destituído de sua identidade. O eu coletivizado, ao se individualizar, pateticamente, é o corpo, que mergulhado duas vezes nas águas de um rio, não consegue, aquele, repetir a ação idêntica quando da sua investida inicial. Em mutação acelerada por um digitalismo global e um capitalismo canibalesco, o eu da coletividade é um ícone desprovido de significante e de significado. Que protagonismo, portanto, exercerá o Inconsciente diante da falibilidade que acomete as instâncias psíquicas por causa do enfraquecimento da Linguagem? O verdadeiro eu está alocado em algum arquivo oculto e o recrudescimento, neste sentido, é, inequivocamente, uma rota de escape. Messianismo em Psicanálise não existe e jamais existirá; o que há, com efeito, é uma rede complexa e latente denominada mecanismo de defesa. A realidade de um eu estilhaçado, que não tem (mais) o suporte de um superego falido, está sob forte ataque, pois o instrumental de defesa - a palavra - foi desconstruída; e, na transitividade da crise, a fagulha essencial do logos também deverá estar alocada em outro arquivo, que, por sua vez, estará suspenso e ocultado pelo manto da invisibilidade. Realidade e fantasia emergem de uma Caverna, onde o Dragão nunca perece; e Sheila, a ladra, surgiu para proteger a palavra essencial, o ego fraturado e um superego desconstruído. Que chave abrirá o portal para o retorno triunfal das vozes aprisionadas?


O Homem não vive sem a (sua) linguagem. Código essencial; fogo roubado dos deuses - senha prometéica, que garantiu, segundo a narrativa mítica, a evolução da espécie humana, sua descoberta como grupo social e, sobretudo, protagonista de uma realidade superegoica em formação, ainda que o psiquismo, como fora concebido pelas tábuas freudianas, não tivesse emergido na consciência tribal, impulsiva e instintiva para consagrar a luz do Ego como logos fundador, na cena da Cultura. Mal - estares apartados, o Homem da nova centúria não goza de bem - estar algum. Algo que ultrapassa a náusea sartreana e uma vertigem, que dá arrepios a qualquer acrobata na corda bamba, o espetáculo é o do absurdo, pois os egos mascarados são distorções de uma realidade em desconstrução e, quiçá, em reorganização. Superego obeso é sintoma de morte no ar: das instituições carcomidas por falsos valores e pela hipocrisia, que assola as mentes daqueles que produzem leis para o favorecimento de poucos e para o estraçalhamento da maioria. Em tempos de barbárie e de uma ameaça, que põe em xeque a sobrevivência de um sujeito, que pode, de forma remota, mas não impossível, fixar-se na zona fronteiriça de si, enraizando suas dúvidas e medos em uma zona neutra, e que, por ser o espaço do trânsito, a aparência da quietude pode revelar o traço hediondo de um ser que não faz/fará distinção entre o amor e o ódio, a guerra e a paz, a verdade e a mentira, o sim e o não, o início e o fim; a estrutura do psiquismo pode sofrer um colapso individualizante no perímetro da entidade que se globaliza e não se sustenta. Por fim, o  Superego é uma ilusão de ótica de um Ego, que não existe mais; é, com efeito, uma estrela longínqua no firmamento, cujo brilho ainda alcança os olhos humanos, mas a luz do astro, que viaja no espaço sideral, é lembrança de um corpo que há muito já conhecera o próprio fim. 


Em reconstrução, os enigmas amordaçam lábios carentes e um silêncio tirânico oculta o voo majestoso da esfinge. No estilhaçamento das realidades pós-metafísicas, um outro mistério impõe uma indagação angustiante: como recuperar os arquivos perdidos?

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