13 de julho de 2011

PARA ALÉM DA PSICANÁLISE

                                                                               
 "Wo Es war Soll Ich werden"
                                                                                  Sigmund Freud.

Sigmund Freud morreu. O homem Freud morreu como morrem todos os mortais. Isto é um fato histórico  e incontestável; e nas assertivas supramencionadas não há qualquer assombro, pois, com o seu desenlace, há exatos 155 anos, devido a um câncer bucal que o incomodou durante os últimos dezesseis anos de sua vida laboriosa, vagas imensas surgiram, à época, diante de olhares perplexos e indagadores acerca de uma realidade, que parecia mergulhar em um declive profundo, pois o sentimento de orfandade pairava sobre todos que compreenderam a real dimensão da Psicanálise, seu objeto e seu alcance, respectivamente, em um mundo que seria marcado pela fragmentação do sujeito e pela crise aguda do lógos na esfera dos saberes. Assim, com efeito, o pensamento freudiano teve implicações capitais na construção da identidade do homem do século XX, que mal se compreendia, antes do desvelamento das  inúmeras verdades, encerradas no psiquismo selvagem, original, essencial.
Com o advento da Peste, pois fora desse modo que aqueles que se opunham vorazmente à Psicanálise, com seus métodos inovadores, ao tempo que surgira, se referiam, uma nova realidade emergia, e o Homem era convidado a descobrir-se a si mesmo, através de palavras associadas e de sonhos narrados - matéria - prima para o fazer psicanalítico; e o exercício, ainda incipiente, da clínica, onde analista e analisando se confrontavam para que verdades recalcadas fossem expelidas do inconsciente enigmático, provocador e desiderático. Neste sentido, o Seelenapparat não era uma estrutura exógena ao próprio Homem, mas, antes, para o seu próprio desespero, constituía a espinha dorsal do Inconsciente, na amplitude significativa do Unbewusst freudiano.
Em verdade, o pai da Psicanálise jamais imaginou, um dia, que esta última tivesse alcances tão longínquos, pois fora tão mal compreendida, por muito tempo, desde o seu surgimento, não fossem os esforços árduos e contínuos empreendidos pelo médico austríaco. Aliás, as discussões acerca do pensamento psicanalítico ainda se dão no calor das horas infindáveis assim como as aplicabilidade e eficácia de seu método, respectivamente, desde a concepção metapsicológica à realidade individualizada do Homem em seu cotidiano, cuja palavra de ordem e balizadora de todas as coisas é SER, em toda sua plenitude, segundo postulam os ditames da Filosofia.
Claro está que este texto não tem a pretensão de discutir o estatuto do Dasein heideggeriano nem tampouco exigir dos estudos psicanalíticos a sua definição e, por conseguinte, o seu posicionamento ideológico e/ ou filosófico em relação ao SER como advento fenomenológico, propiciando um possível embate entre as diretrizes da Filosofia e os paradigmas da Psicanálise. Todavia, cumpre afirmar que Sigmund Freud, ao lançar as bases para fundamentar suas teses sobre a realidade psíquica do Homem e todos seus desdobramentos, factíveis na realidade exógena, não previu o salto qualitativo que a Humanidade daria para a compreensão de seu papel enquanto agenciadora de uma realidade que se constrói e se manifesta na imanência e na latência de seu contínuo devir. Desse modo, portanto, não é cabível tratar da crise do pensamento psicanalítico ou mesmo da falência da Psicanálise, colocando esta última no rol dos fatos apocalípticos, prática bastante comum na decadência epocal do século XX, e no limiar do século XXI.
Grosso modo, é como se, primeiramente, Freud tivesse atirado, para o centro de um lago, uma pedra, e , posteriormente, desse as costas, de forma abrupta, e não esperasse o movimento das ondas circulares, emanadas do centro do lago para se dissiparem nas bordas. Não há qualquer novidade nesta ilustração, mas o óbvio está no fato de que o Homem, a despeito, por exemplo, de um pensamento globalizado, tenha, enfim, se tornado universal, único, e, por conseguinte, uníssono. Este é, sem dúvida, o portrait da Humanidade, no trânsito intermilenar. O mundo globalizado, assim, parece determinar outros comportamentos, nos quais as diferenças serão esmagadas pela unidade daquele.
Desse modo, é peremptório asseverar que não existe uma crise do pensamento psicanalítico como fazem os terroristas de plantão, que adicionam absolutamente nada de salutar à coisa - das Ding. O que há, com efeito, é uma crise do pensamento em sua totalidade, mais especificamente da Metafísica; ordenamento lógico e epistemológico do homem ocidental.
O representante do Ocidente está em crise;  o principal ator da história amarga sobre si uma noite, quase eterna, causando-lhe a angústia e a náusea, de acentos sartrianos. A sua linguagem o torna refém de uma realidade limitada; reduz, consideravelmente, o horizonte daquele, furtando-lhe a possibilidade de tensionamento entre o visível e o não - visível. Por conseguinte, qualquer tentativa de verticalização está / estará fadada ao fracasso, em princípio.
O Homem, na virada do século e do milênio, simultânea e ambivalentemente, estará em crise porque estará no turno da passagem; em trânsito. Contudo, cumpre salientar que o homem decadente não dista da geração do século in extremis ( a vigésima centúria ) como se fosse um elemento, uma fábula saída de profecias; ou, quiçá, um ser fincado num futuro previsível. Este, de forma plena e cabal, é o Homem da travessia que, em última análise, será o próximo enigma a ser desvendado; seja pelo Si, em reflexo angular, na superfície do speculum, seja pela esfinge, fantasmagórica, mortal e necessária, a destilar, soberana, fome e mazelas por toda terra.
O século XX fora, indelevelmente, o tempo do sujeito, em que a voz do Eu, paradoxalmente, massificou a realidade de um homem dito tecnológico, e, provocou, concorrendo para a avaria daquele, o enfraquecimento, a fissura, e, conseqüentemente, a fratura daquele. À quebra, portanto, seguiu-se a fragmentação do sujeito, debilitando seu lógos, cada vez mais complexo, cada vez mais monológico, criando, portanto, hiatos, ecos; e transformando a civilização num mal-estar sem precedentes. Este é painel no qual se configuram as questões que orbitam o sujeito, onde a sublimação começa a ser compreendida sob outros acentos; redimensionada, ampliada, e, em última instância, revisitada.
Novos ventos sopraram, e desde a retomada da letra freudiana, por Lacan, a Peste, ainda, há de causar muitos estragos, para a infelicidade dos mais céticos, que insistem em reduzir o campo de ação dos estatutos psicanalíticos bem como sua atividade no âmbito social enquanto fazer terapêutico, legitimado por um método e por um saber próprios. À época de sua aparição, a Psicanálise, vista como a cura de todos  os males, causou estranheza à humanidade de então; hodiernamente, no entanto, atesta-se a possibilidade de uma crise concernente à discursividade e ao modus operandi daquela, constituindo-se, desse modo, uma visão assaz míope sobre o universo psicanalítico.
Ora, se há, em verdade, uma crise no pensamento ocidental, e, portanto, da Ciência, que representa os atores daquele, há, indubitavelmente, uma crise do lógos. Neste sentido, o diá-logo está temporariamente (inter)rompido (?). Conseqüentemente, este é o início do tempo da escuta; o tempo da audiência e não da fala.. É tempo de silêncio. De um silêncio que fala nas entrelinhas. Daí o sentido e a razão de ser da Arte que, ao se manifestar na poesia, na pintura ou na escultura, sob a forma de síntese, revela o vigor e a plenitude do silêncio, através da contemplação, que dispensa signos verbais, palavras, nomes; quaisquer instâncias que delimitem o ilimitado. No círculo que nunca se esgota, a essência em seu devir fundador - a poiesis.
Nesta diretriz, o Homem que se compreende como entidade globalizada não parece livrar-se do deserto, cuja extensão alonga o olhar melancólico daquele, rumo a um horizonte cada vez mais remoto de sua consciência, e que, por sua vez, está  mais turva; mas, antes, vislumbra o acirramento da própria crise, em seu percurso histórico, transformando-o, para além do fragmento, na vítima de sua obesa solidão; da afasia do ser que se perde no lógos em tomos cifrados e ininteligíveis. O Homem, desse modo, materializará, na prática, a metáfora da lendária Torre de Babel. O seu conceito de unificação, eliminando as diferenças em detrimento das linguagens midiáticas, no trânsito que ainda não terminou, não concorre para dirimir as dúvidas existenciais ou para seus saldar débitos com sua consciência planetária. A crise do ator da História, um fenômeno mundial, adensará o estado barroco dos dualismos, das ambigüidades e das hipérboles, por um lado, e promoverá conflitos de outra ordem, ainda sem face e sem corpo definidos, por outro lado. A Humanidade tornar-se-á um sujeito singular de uma crise também singular: a de Ser. Crise calcada nos simulacros, nos hologramas, nas telas virtuais; gerando, implacavelmente, a perda irreparável da identidade.
A Psicanálise, segundo a postulação freudiana, não promete paraísos, mas, no âmbito de sua atuação, denuncia a existência dos prováveis infernos, e ensina a todos a convivência equilibrada e pacífica com tais realidades, díspares e contraditórias. O Homem não precisa acordar de seus sonhos, mas, também, não poderá impedir seus pesadelos, que são / serão necessários para a construção de sua verdade. Eis o mistério do lógos: a escuta abissal do Eu, através da fala do Inconsciente. Do caos à organização, a esperança do encontro com as vozes perdidas do Eu, que se pulverizou nas ilhas tecnológicas da contemporaneidade.
A Psicanálise é a Peste que resiste aos infortúnios do tempo, às críticas que visam desconstruir seu aparato científico; ao antídoto de oportunistas que tentam invalidar a legitimidade de seu discurso em um tempo marcado pela derrocada do sujeito e pelo desequilíbrio das realidades coexistentes, em um mundo rebatizado pelas letras www.
É imperioso ratificar, no percurso dos traços mnemônicos, que a Psicanálise não garante a redenção de almas, mas, também, não se circunscreve no espaço da crise, que tanto se apregoa aqui e alhures, pois a grande descoberta dos estudos metapsicológicos, empreendidos por Freud, fora a revelação do aparelho psíquico e a natureza do Inconsciente, cuja fala não está sujeita às corrupções das linguagens humanas, sempre convencionais, sempre arbitrárias. Assim, a Psicanálise, com seu arcabouço teórico e prático, respectivamente, e com a ampliação de suas fronteiras dialógicas, consolida seu lugar entre as formas de compreensão do Homem em sua realidade psicológica, psíquica, metapsicológica e psicossomática.
Por este turno, se o Inconsciente se estrutura como linguagem, segundo o mestre Lacan, que renovou os  estudos freudianos, cumpre ressaltar que é sobre este Inconsciente que a reflexão tem / terá de repousar seus parâmetros e suas sentenças de verdade, para atualizar o pensamento psicanalítico, na era digital, sob pena daquele padecer de uma crise crônica de representação no Real, que, progressivamente, tende a obliterar as diferenças.
O como lacaniano é, em última análise, a senha infalível para a escuta do silêncio, assim como fazem os poetas no fluxo contínuo da linguagem poética, que se apresenta ao mundo sob o fabuloso véu das máscaras e dos fingimentos. Aliás, na cena aprazível das realidades lúdicas, as esfinges existem para serem decifradas, e não para devorarem os homens; e, com certeza, a Peste está mais viva do que nunca. Quem ousará matá-la?

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