3 de maio de 2011

A fenda, o abismo e o silêncio: (con)figurações da subjetividade

Os estudos psicanalíticos, por via freudiana, desde a fundação da Psicanálise, não concebe o Homem como substância plenificada de sentidos cuja atuação na realidade objetiva se dá pela completude de sua existência. Ao contrário: é sob o estado movediço da incompletude que o protagonista do sujeito se lança como móvel representativo da dualidade, da dubiedade, da contradição, e, por conseguinte, dos estados nevrálgicos que acometem a psiquê, ao ser compreendida esta última como consciência em contínuo estado de formação.
Ser consciente, portanto, é mergulhar, de forma radical, na inconsciência que nos transforma no agente do lógos, do pensamento, e, em instância ulterior, da razão. Tal condicionamento, se, por um lado, coloca o Homem em rota de colisão, pois o vetor da consciência sofre o peso da âncora dos valores da cultura e das leis regulatórias, castradoras, proibitivas e coercitivas, denominada aquela por SUPEREGO, por outro lado, a nossa verdadeira identidade, recalcada no INCONSCIENTE, nos liberta das amarras do mundo marcado por um mal - estar civilizatório, em consonância com Sigmund Freud.
Entre a consciência, que mascara o céu que não possuímos, e a inconsciência, que revela o inferno que somos, a razão é, desse modo, o câmbio flutuante de nossas emoções, que, se não tende à degenerescência, pois é virtual, também não se torna o porto seguro - tópos ideal do ser humano, que vislumbra no sonho a perfeição que jamais alcançaremos na vida compreendida como processo de formação do sujeito. Nesta  configuração triangular, a subjetividade é corroída por uma ferrugem que não molda o sujeito, em sua instância egóica, mas, antes, mina as estruturas daquele, concorrendo para o estado de crise permanente no qual todos estamos, desde o nascimento até o desenlace.
Não existem sujeitos perfeitos. Não há subjetividades formadas. No sujeito e na subjetividade há vãos consideráveis nos quais o psiquismo, por ser uma fornalha dinâmica, age, reage e / ou retroage, dependendo dos processos endógenos e exógenos, respectivamente, pelos quais a entidade egóica passa. Sem estas ações hostis, sem este quadro, aparentemente selvagem, o ser humano não atinge o estado de sobrevivente no mundo. Para atravessar a ponte, o deserto, a escuridão, qualquer que seja a metáfora que utilizemos para denotar a realidade da esfera na qual o humano se circunscreve, é importante que reconheçamos as imperfeições que delimitam a nossa existência, e, simbioticamente, a nossa essência. 
Nesta diretriz, a Filosofia, a Religião, a Psicologia e a Psicanálise atravessam encruzilhadas similares.A primeira  se preocupa com o movimento angular do ser e sua representação no Real, através da atividade do pensamento. A segunda tem como objetivo apontar na falha do sujeito a necessidade da busca, e, claro, da presença de uma entidade sobrenatural para que alcancemos o equilíbrio. A terceira envida todos os esforços metodológicos e clínicos para ajustar o sujeito e mantê-lo integrado na malha social. A quarta visa à conscientização dos estados perfeitos e imperfeitos que moldam o sujeito, não prometendo a este último a cura de todos os males, mas a capacidade de lidar com as realidades diversas e adversas que atingem e compõem a nossa personalidade.
Claro está que em todas as descrições conceituais elaboradas acima percebe-se cristalinamente a condição do Homem na acepção de sujeito. Qual seja: as subjetividades de todos os indivíduos que se compreendem por existentes estão carentes por alguma coisa; estão adoecidas, e, portanto, precisam de tratamento. A tese da incompletude, abordada no início desse texto, é a constatação inequívoca de que ninguém na face da Terra goza de uma saúde plena e incorruptível ao nível do psiquismo. Eis aqui o idealismo, e, portanto, o sonho. Na utopia, a inexistência ou a eliminação de todas as doenças que podem nos acometer, inclusive as perturbações de ordem somática e psicossomática. Na realidade, um aparelho chamado de psíquico, que, movido pelas pulsões de vida e de morte, respectiva e concomitantemente, luta para sobreviver nas selvas de pedra que construímos para a nossa própria ruína.
A falha que nos constitui como sujeitos em crises, açoitados pelas neuroses ou naufragados pelas psicoses, é a fenda que descobrimos quando reconhecemos que o que nos impulsiona na realidade é a atividade ininterrupta do Desejo. Assim, sempre desejamos algo; desejamos alguma coisa; desejamos muitas coisas; desejamos um universo impensável de coisas, e que nunca nos satisfaz. Logo, a busca pela satisfação de nossa vontade consciente nada mais é do que a perseguição incansável do nosso inconsciente, que funda no desejo a pátria da realização de todos os nossos sonhos e projetos de vida - processos que são mensurados pela tentativa constante, mas não pela realização integral daqueles. O desejo, por seu turno, implica prazer, e o prazer é o objetivo principal de toda cadeia significativa e metassignificativa do Eu, no circuito do aparelho psíquico. 
Uma vez percebida a fenda em nossa constituição psíquica, há, inegavelmente, entre o ideal (o desejo) e o real (a satisfação) um abismo considerável, que nos obriga a refletir sobre a nossa condição temporal, finita, e que nos torna reféns das patologias que atingem o aparelho psíquico no mundo contemporâneo; todas sob um guarda-chuva crescente chamado stress.
O silêncio - a ausência da palavra que não desconstrói a essência da verdade, mas potencializa, de forma simbólica, o valor do lógos -, se transforma na última parada de uma estação ferroviária, onde psicólogos e psicanalistas encontram na clínica (o fazer terapêutico) o exercício de escuta do Outro, que, operando o diálogo, percebe as fendas e os abismos que dispõem analistas de um lado e analisandos do outro.
Na fenda do eu, o abismo do Outro; no silêncio do eu, a palavra do Outro; na subjetividade do analisando, a verdade do analista. Todos sob o véu atraente do Desejo. Desejo de falar, desejo de ouvir e desejo de se calar, configurando e reconfigurando as subjetividades possíveis.



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